São Paulo, terça-feira, 14 de março de 2006

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BERNARDO CARVALHO

Já não existem mentiras

Há 90 anos, o francês Victor Segalen terminava a última versão do seu romance "René Leys", iniciado três anos antes, em 1913. Nada explica que o livro, publicado postumamente, em 1922, até hoje não tenha sido traduzido no Brasil (há uma edição portuguesa, da Assírio Alvim).
Segalen nasceu em Brest, em 1878, e morreu misteriosamente, numa floresta da Bretanha, em 1919, tendo nas mãos uma edição das peças de Shakespeare aberta no terceiro ato de "Hamlet". Nada explica também a morte do escritor. É possível que tenha se suicidado. Sofrendo de depressão, tinha saído para uma caminhada e foi encontrado morto, dois dias depois, sem nenhuma outra razão além de um ferimento no calcanhar, exatamente como Gauguin, cuja morte na Polinésia o próprio Segalen descrevera anos antes num texto sobre o pintor.
Ouço falar de Segalen desde que fui à China, em 2002. No ano passado, um jornalista bretão ficou espantado com a minha ignorância quando citou o autor, que eu não tinha lido, para tentar me fazer compreender do que estava realmente falando quando se referia aos "escritores-viajantes", já que eu mostrava uma resistência cega ao rótulo de "literatura de viagem". No início de janeiro, um editor inglês de passagem pelo Brasil me falou de novo em Segalen. E, há duas semanas, me mandou por correio uma edição de bolso de "René Leys", com um cartão: "Espero que você possa achá-lo interessante...".
"René Leys" é um livro que você só compreende aos poucos. A revelação final diz menos sobre a intriga (se é que há realmente uma intriga) do que sobre o próprio romance. Em 1902, depois de se formar na Escola de Saúde Naval de Bordeaux, Segalen partiu para o Taiti a serviço da Marinha francesa. No meio do caminho, doente de tifo, foi obrigado a passar um mês em San Francisco, onde descobriu a cultura chinesa.
Em 1909, conseguiu uma transferência para a China e se instalou em Pequim. Um ano depois, às vésperas da queda da dinastia Qing, conheceu Maurice Roy, filho do diretor do correio francês na capital chinesa. O rapaz de 19 anos serviu de inspiração para o protagonista de "René Leys".
O romance está baseado na obsessão da dúvida. Segalen substitui o tradicional saber absoluto do autor/narrador pela suspeita. O narrador compartilha com o leitor a desconfiança do que é narrado. O próprio narrador (criado à imagem do autor) não sabe nada. E o romance depende disso.
René Leys é filho de um comerciante belga em Pequim. Fala chinês fluentemente. Começa a dar aulas de chinês ao narrador, que por sua vez só pensa nos segredos guardados atrás dos muros intransponíveis da Cidade Proibida, onde vivem o imperador de quatro anos, o regente e a jovem imperatriz, viúva do imperador precedente, morto em condições misteriosas. Quer saber o que há atrás dos muros, quer penetrar o interior do palácio. A obsessão pelo inacessível, cheia de conotações sexuais, remete também, irremediavelmente, às metáforas de "A Muralha da China" e de "O Castelo", de Kafka, de quem Segalen foi contemporâneo.
Quando o pai de René Leys volta para a Europa, o rapaz vai viver na casa do narrador. E passa a satisfazê-lo com suas histórias, todas ambíguas, contadas pela metade, sobre o interior da Cidade Proibida, à qual ele supostamente teria acesso privilegiado. O narrador fica encantado. Sua relação com o jovem hóspede, baseada no desejo de imaginar, é análoga à do leitor com o livro. Desconfia da veracidade do que diz o seu interlocutor, mas prefere acreditar, quer acompanhá-lo nas suas histórias extraordinárias até o interior do palácio, quer uma via de acesso ao desconhecido, como o leitor que abre um romance.
Lá pelas tantas, o narrador escreve: "adoto, apesar de mim, o estilo que conviria a este livro se eu viesse a escrevê-lo... este livro que nunca será, pois não vale mais a pena vivê-lo?". Toda a narrativa fala, por meio da obsessão de penetrar o interior da Cidade Proibida, com seus segredos e intrigas, do desejo que precede o livro. Por isso, o paradoxo: o jogo e a ironia de um romance que se renega e se impõe ao mesmo tempo, num mesmo movimento de suspeita e desejo de acreditar. O narrador precisa negar o tempo inteiro a existência do livro que o leitor tem nas mãos, para poder reproduzir entre o leitor e o narrador, na própria narrativa, a mesma relação ambivalente de desejo que se estabelece na origem do projeto literário, entre o escritor e o mundo, entre o narrador e seu informante, René Leys.
Aos poucos, o narrador (e com ele o leitor) compreende que as histórias são fruto do seu desejo e da sua dúvida. São as perguntas do narrador que conduzem o jovem René Leys a contar a história que o narrador (e o leitor) quer ouvir. Revelação e desejo, descoberta e invenção passam a ser sinônimos. Segalen marca a diferença entre a literatura e o relato que se lê como simples registro de uma realidade (histórica ou social) que o precede. Não é que a verdade seja inacessível; é que já não existem mentiras. A vida nasce da ficção, que também pode engendrar a morte. "René Leys" fala da capacidade que a imaginação tem de agir sobre o real e recriá-lo. É o que o narrador vai descobrir no final do romance, espantado, junto com o leitor. Não poderia haver maior elogio da literatura.


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