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BERNARDO CARVALHO
Já não existem mentiras
Há 90 anos, o francês Victor
Segalen terminava a última
versão do seu romance "René
Leys", iniciado três anos antes,
em 1913. Nada explica que o livro,
publicado postumamente, em
1922, até hoje não tenha sido traduzido no Brasil (há uma edição
portuguesa, da Assírio Alvim).
Segalen nasceu em Brest, em
1878, e morreu misteriosamente,
numa floresta da Bretanha, em
1919, tendo nas mãos uma edição
das peças de Shakespeare aberta
no terceiro ato de "Hamlet". Nada explica também a morte do escritor. É possível que tenha se suicidado. Sofrendo de depressão, tinha saído para uma caminhada e
foi encontrado morto, dois dias
depois, sem nenhuma outra razão além de um ferimento no calcanhar, exatamente como Gauguin, cuja morte na Polinésia o
próprio Segalen descrevera anos
antes num texto sobre o pintor.
Ouço falar de Segalen desde que
fui à China, em 2002. No ano passado, um jornalista bretão ficou
espantado com a minha ignorância quando citou o autor, que eu
não tinha lido, para tentar me fazer compreender do que estava
realmente falando quando se referia aos "escritores-viajantes", já
que eu mostrava uma resistência
cega ao rótulo de "literatura de
viagem". No início de janeiro, um
editor inglês de passagem pelo
Brasil me falou de novo em Segalen. E, há duas semanas, me mandou por correio uma edição de
bolso de "René Leys", com um
cartão: "Espero que você possa
achá-lo interessante...".
"René Leys" é um livro que você
só compreende aos poucos. A revelação final diz menos sobre a
intriga (se é que há realmente
uma intriga) do que sobre o próprio romance. Em 1902, depois de
se formar na Escola de Saúde Naval de Bordeaux, Segalen partiu
para o Taiti a serviço da Marinha
francesa. No meio do caminho,
doente de tifo, foi obrigado a passar um mês em San Francisco, onde descobriu a cultura chinesa.
Em 1909, conseguiu uma transferência para a China e se instalou em Pequim. Um ano depois,
às vésperas da queda da dinastia
Qing, conheceu Maurice Roy, filho do diretor do correio francês
na capital chinesa. O rapaz de 19
anos serviu de inspiração para o
protagonista de "René Leys".
O romance está baseado na obsessão da dúvida. Segalen substitui o tradicional saber absoluto
do autor/narrador pela suspeita.
O narrador compartilha com o
leitor a desconfiança do que é
narrado. O próprio narrador
(criado à imagem do autor) não
sabe nada. E o romance depende
disso.
René Leys é filho de um comerciante belga em Pequim. Fala chinês fluentemente. Começa a dar
aulas de chinês ao narrador, que
por sua vez só pensa nos segredos
guardados atrás dos muros intransponíveis da Cidade Proibida, onde vivem o imperador de
quatro anos, o regente e a jovem
imperatriz, viúva do imperador
precedente, morto em condições
misteriosas. Quer saber o que há
atrás dos muros, quer penetrar o
interior do palácio. A obsessão pelo inacessível, cheia de conotações
sexuais, remete também, irremediavelmente, às metáforas de "A
Muralha da China" e de "O Castelo", de Kafka, de quem Segalen
foi contemporâneo.
Quando o pai de René Leys volta para a Europa, o rapaz vai viver na casa do narrador. E passa
a satisfazê-lo com suas histórias,
todas ambíguas, contadas pela
metade, sobre o interior da Cidade Proibida, à qual ele supostamente teria acesso privilegiado. O
narrador fica encantado. Sua relação com o jovem hóspede, baseada no desejo de imaginar, é
análoga à do leitor com o livro.
Desconfia da veracidade do que
diz o seu interlocutor, mas prefere
acreditar, quer acompanhá-lo
nas suas histórias extraordinárias
até o interior do palácio, quer
uma via de acesso ao desconhecido, como o leitor que abre um romance.
Lá pelas tantas, o narrador escreve: "adoto, apesar de mim, o
estilo que conviria a este livro se
eu viesse a escrevê-lo... este livro
que nunca será, pois não vale
mais a pena vivê-lo?". Toda a
narrativa fala, por meio da obsessão de penetrar o interior da Cidade Proibida, com seus segredos
e intrigas, do desejo que precede o
livro. Por isso, o paradoxo: o jogo
e a ironia de um romance que se
renega e se impõe ao mesmo tempo, num mesmo movimento de
suspeita e desejo de acreditar. O
narrador precisa negar o tempo
inteiro a existência do livro que o
leitor tem nas mãos, para poder
reproduzir entre o leitor e o narrador, na própria narrativa, a
mesma relação ambivalente de
desejo que se estabelece na origem
do projeto literário, entre o escritor e o mundo, entre o narrador e
seu informante, René Leys.
Aos poucos, o narrador (e com
ele o leitor) compreende que as
histórias são fruto do seu desejo e
da sua dúvida. São as perguntas
do narrador que conduzem o jovem René Leys a contar a história
que o narrador (e o leitor) quer
ouvir. Revelação e desejo, descoberta e invenção passam a ser sinônimos. Segalen marca a diferença entre a literatura e o relato
que se lê como simples registro de
uma realidade (histórica ou social) que o precede. Não é que a
verdade seja inacessível; é que já
não existem mentiras. A vida
nasce da ficção, que também pode engendrar a morte. "René
Leys" fala da capacidade que a
imaginação tem de agir sobre o
real e recriá-lo. É o que o narrador vai descobrir no final do romance, espantado, junto com o
leitor. Não poderia haver maior
elogio da literatura.
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