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"Jantando com Melvin" embaralha os sentidos do verbo comer
da Equipe de Articulistas
"Jantando com Melvin" é um
dos livros mais cruéis e divertidos
dos últimos tempos.
A pretexto de narrar um jantar
que reúne quatro casais na casa de
um deles, no bairro paulistano do
Sumaré, Marcelo Coelho traça um
retrato impiedoso de uma classe
média que se pretende ao mesmo
tempo culta, chique e de esquerda.
Uma fauna cujos hábitats preferidos são a praça Vilaboim e adjacências, sítios em Ibiúna, apartamentos de Perdizes.
O livro é narrado em primeira
pessoa por Maurício, advogado e
escritor que encara seus companheiros de ceia -incluindo sua
mulher, Lena- com um misto de
raiva impotente, cumplicidade
culpada e desprezo passivo. É alguém que está com um pé fora e
outro dentro do universo que descreve.
À diferença do que ocorreria numa narrativa realista convencional, o olhar de Maurício não apenas registra e filtra o que acontece,
mas também cria, pelo menos em
parte, o mundo à sua volta, inventando pensamentos alheios, desdobrando possibilidades, antecipando consequências.
Nada é transparente aqui, em
suma, assim como não são transparentes as relações entre esses
personagens para quem o verbo
parecer é muito mais importante
do que o verbo ser.
Por trás de discussões sobre taxa
de câmbio, música erudita, miséria no sertão da Bahia, discos voadores ou cultura indígena, o que
importa mesmo é saber quem está
comendo quem.
Mas não há crueza nem grossura
nesse desvelamento. Mesmo porque o comer aqui tem vários sentidos: o alimentar, o sexual e o metafórico. De certo modo, o livro
pode ser lido como uma discussão
sobre o mito da antropofagia (cultural, entenda-se), virado pelo
avesso pela chamada globalização.
Maurício, o narrador (ou será
Marcelo, o autor?), tem aliás a
compulsão da metáfora, e toda a
sua narrativa se organizará segundo o princípio da associação de
imagens.
A pilha de carne num prato evoca a Trump Tower, uma mulher
volumosa é associada a um monumento tolteca. Tudo remete a tudo: forças de mercado a bactérias,
cubos de gelo a astronautas, mãos
gordas a lulas cozidas.
Há metáforas extraídas da economia política, da "Bíblia", da informática, da ecologia, da culinária, da música etc.
Se uma idéia geral unifica esse
conjunto heterogêneo de imagens
e analogias, é a idéia de sistema, ou
melhor, de organismo.
Cada "corpo" -seja ele uma peça musical, uma sobremesa, uma
teoria econômica ou um corpo
humano propriamente dito- é
descrito em suas partículas mínimas e em seu funcionamento interno. Não houve exagero quando
se falou em fauna: é com frieza de
zoólogo que Maurício (Marcelo?)
examina seus circunstantes.
Quem se acostumou com o caloroso humanismo de certas crônicas de Marcelo Coelho na Ilustra
da pode ir deixando a esperança
do lado de fora: nesse livro tão engraçado não há espaço para a graça (no sentido epifânico da palavra).
Seus comensais são uma gente
sem remédio, sem remorso e sem
remissão. Pobres de nós.
(JGC)
Livro: Jantando com Melvin
Autor: Marcelo Coelho
Lançamento: Imago
Quanto: não divulgado (164 págs.)
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