São Paulo, sábado, 14 de março de 1998

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"Jantando com Melvin" embaralha os sentidos do verbo comer

da Equipe de Articulistas

"Jantando com Melvin" é um dos livros mais cruéis e divertidos dos últimos tempos.
A pretexto de narrar um jantar que reúne quatro casais na casa de um deles, no bairro paulistano do Sumaré, Marcelo Coelho traça um retrato impiedoso de uma classe média que se pretende ao mesmo tempo culta, chique e de esquerda.
Uma fauna cujos hábitats preferidos são a praça Vilaboim e adjacências, sítios em Ibiúna, apartamentos de Perdizes.
O livro é narrado em primeira pessoa por Maurício, advogado e escritor que encara seus companheiros de ceia -incluindo sua mulher, Lena- com um misto de raiva impotente, cumplicidade culpada e desprezo passivo. É alguém que está com um pé fora e outro dentro do universo que descreve.
À diferença do que ocorreria numa narrativa realista convencional, o olhar de Maurício não apenas registra e filtra o que acontece, mas também cria, pelo menos em parte, o mundo à sua volta, inventando pensamentos alheios, desdobrando possibilidades, antecipando consequências.
Nada é transparente aqui, em suma, assim como não são transparentes as relações entre esses personagens para quem o verbo parecer é muito mais importante do que o verbo ser.
Por trás de discussões sobre taxa de câmbio, música erudita, miséria no sertão da Bahia, discos voadores ou cultura indígena, o que importa mesmo é saber quem está comendo quem.
Mas não há crueza nem grossura nesse desvelamento. Mesmo porque o comer aqui tem vários sentidos: o alimentar, o sexual e o metafórico. De certo modo, o livro pode ser lido como uma discussão sobre o mito da antropofagia (cultural, entenda-se), virado pelo avesso pela chamada globalização.
Maurício, o narrador (ou será Marcelo, o autor?), tem aliás a compulsão da metáfora, e toda a sua narrativa se organizará segundo o princípio da associação de imagens.
A pilha de carne num prato evoca a Trump Tower, uma mulher volumosa é associada a um monumento tolteca. Tudo remete a tudo: forças de mercado a bactérias, cubos de gelo a astronautas, mãos gordas a lulas cozidas.
Há metáforas extraídas da economia política, da "Bíblia", da informática, da ecologia, da culinária, da música etc.
Se uma idéia geral unifica esse conjunto heterogêneo de imagens e analogias, é a idéia de sistema, ou melhor, de organismo.
Cada "corpo" -seja ele uma peça musical, uma sobremesa, uma teoria econômica ou um corpo humano propriamente dito- é descrito em suas partículas mínimas e em seu funcionamento interno. Não houve exagero quando se falou em fauna: é com frieza de zoólogo que Maurício (Marcelo?) examina seus circunstantes.
Quem se acostumou com o caloroso humanismo de certas crônicas de Marcelo Coelho na Ilustra da pode ir deixando a esperança do lado de fora: nesse livro tão engraçado não há espaço para a graça (no sentido epifânico da palavra).
Seus comensais são uma gente sem remédio, sem remorso e sem remissão. Pobres de nós. (JGC)
Livro: Jantando com Melvin Autor: Marcelo Coelho Lançamento: Imago Quanto: não divulgado (164 págs.)


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