São Paulo, sábado, 14 de março de 1998

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ARTIGO
O holocausto negro

JOSÉ SERRA
Colunista da Folha

"O escravo é uma propriedade com alma." Aristóteles

Ao contrário do consagrado "A Lista de Schindler", Steven Spielberg, desta vez, não agradou aos críticos nem empolgou o público. É uma pena, porque seu último filme, "Amistad", atualmente em cartaz em São Paulo, tem méritos e aborda com dignidade um dos dramas cruciais da história moderna.
Das maldades que um ser humano pode fazer a outro, nenhuma supera a escravidão. Capturado à força, arrancado de sua família e de sua cultura, transportado como animal para uma terra estranha e distante, coagido a trabalhar até a exaustão, supliciado à menor falha, morto a qualquer tentativa de revolta, o escravo é privado de sua personalidade jurídica, impedido de alimentar projetos e sonhos próprios e transformado em simples peça de cobiça e caprichos alheios. É e não é ser humano.
Apesar de tão contrária à unidade básica da espécie humana, a escravidão de homens, mulheres e crianças tem raízes muito antigas. Tribos pré-históricas já reduziam uma parte de seus prisioneiros de guerra à condição de escravos. Com o desenvolvimento das trocas e das relações monetárias, surgiu a escravidão por dívida, que sobrevive ilegalmente até hoje, inclusive em áreas rurais do Brasil.
O trabalho escravo esteve na base da prosperidade de cidades-Estado como as gregas e de impérios como o romano. Durante a Idade Média, permaneceu nos feudos e reinos cristãos como uma forma de trabalho secundária, utilizada principalmente nos serviços domésticos. Voltou a crescer com a penetração dos comerciantes árabes na África negra. Mas foi nos tempos modernos, com as navegações interoceânicas e o transbordamento mercantil da Europa, que a escravidão atingiu seu maior desenvolvimento.
Estabeleceu-se um tráfico mórbido e triangular. A África foi sangrada demograficamente para facilitar o desbravamento e a ocupação econômica das colônias americanas e acelerar a acumulação de capitais e de riquezas nas metrópoles européias.
Segundo as estimativas do historiador britânico Hugh Thomas, em seu monumental estudo "The Slave Trade", publicado no ano passado, aproximadamente 13 milhões de africanos foram capturados e retirados do continente entre 1440 e 1870; 11 milhões foram vendidos nos mercados americanos; 1,5 milhão perdeu a vida nas cruéis condições da travessia atlântica; 10% não sobreviveram ao primeiro ano de cativeiro nas Américas; e um número desconhecido, mas elevado, de aprisionados pereceu antes mesmo de ser embarcado nos sinistros navios negreiros. Trata-se de imenso, prolongado e imperdoável holocausto.
Das potências marítimas que controlavam o tráfico, Portugal transportou e negociou 4,65 milhões cativos; Inglaterra, 2,6 milhões; Espanha, 1,6 milhão; França, 1,25 milhão; Holanda, 500 mil. Entre as áreas receptoras, o Brasil foi o campeão: importou 4 milhões; as colônias espanholas, inclusive Cuba, 2,5 milhões; as Índias Ocidentais Britânicas, 2 milhões; as Índias Ocidentais Francesas, inclusive a Guiana, 1,6; os Estados Unidos, 500 mil.
Três países americanos, em particular, tiveram seus destinos entrelaçados à escravidão negra: os Estados Unidos, Cuba (a principal colônia espanhola na segunda metade do século 19) e o Brasil. Esses países, aliás, foram os últimos a extinguir o regime escravista: os Estados Unidos, em 1865, como resultado da guerra civil entre o norte industrializado e o sul agrário; Cuba, em 1886, em meio aos conflitos pela independência; e o Brasil, em 1888, há pouco mais de um século. Fomos o último país a abolir a escravidão nas Américas; Portugal o último a fazê-lo na Europa, em 1869.
Um estudante aplicado conhece esses fatos básicos, mas, geralmente, os estuda com frieza, como acontecimentos remotos, que pouco têm a ver com os desafios de hoje.
O primeiro mérito do filme de Spielberg é que resgata os horrores da escravidão com um enfoque ético, que interpela também as sociedades atuais. Todos os homens nascem livres e com direito às mesmas oportunidades de desenvolvimento pessoal? Ou, para que haja civilização, é inevitável submeter a maioria dos homens a regimes opressivos e extenuantes de trabalho em benefício de uma minoria privilegiada?
O segundo mérito é que Spielberg reabre essa discussão reconstituindo, com algumas liberdades factuais, mas com o talento que o caracteriza, uma história verdadeira, que envolveu, entre 1839 e 1841, nos Estados Unidos, um grupo de prisioneiros africanos e as autoridades americanas, além de diplomatas estrangeiros, abolicionistas exaltados, advogados espertos, jornalistas, pintores, músicos, religiosos, estudantes e até mesmo personalidades liberais, como o ex-presidente John Quincy Adams.
O episódio do navio negreiro espanhol, ironicamente batizado de Amistad (amizade), abrange, na verdade, três histórias entrelaçadas. A primeira é a dos africanos capturados na colônia inglesa de Serra Leoa e transportados pelo navio negreiro Tecora até Havana. Spielberg cria, nessa passagem, cenas de sofrimento e altivez que entrarão para a história do cinema.
O brasileiro que assistir a essas cenas e depois reler os inflamados poemas de Castro Alves terá uma nova sensibilidade para entender a indignação do poeta baiano com as atrocidades cometidas nos navios tumbeiros dos traficantes.
Em Havana, um espanhol radicado em Cuba, José Ruiz, compra 49 dos cativos de Serra Leoa e os reembarca no negreiro Amistad, comandado pelo capitão Ferrer. Pretendia revendê-los clandestinamente nos Estados Unidos? Outro espanhol e ex-capitão Pedro Montes também embarca no navio com quatro crianças escravas. Havia ainda, a bordo do Amistad, dois marinheiros e dois escravos pessoais do comandante.
Aproveitando-se de uma tempestade, os africanos conseguem se livrar das correntes e assumir o controle do navio. No entrevero, o comandante e um de seus escravos são mortos, assim como dois africanos. Os marinheiros escapam num barco. Os rebelados contam com Ruiz e Montes para levá-los até a África, mas, ludibriados por eles, acabam na costa dos Estados Unidos, perto de Nova York, onde são aprisionados pela Marinha americana e levados a julgamento.
Aí começa a segunda parte da história, a mais extensa do filme de Spielberg, que talvez por isso se torne excessivamente retórico, cansando o espectador e prejudicando sua identificação emocional com os personagens principais da trama.
O governo americano quer processar os africanos por homicídio e pirataria. A Coroa espanhola reclama que as propriedades de seus súditos sejam respeitadas e que tanto o navio quanto os cativos sejam devolvidos a Cuba. Os abolicionistas americanos, aproveitando as contradições características da época, argumentam que a Inglaterra já abolira a escravidão em suas colônias e que vários tratados internacionais proibiam o tráfico de escravos há vários anos. Os africanos capturados em Serra Leoa eram, portanto, homens livres, sequestrados ilegalmente, tendo o direito de recorrer às armas para recuperar sua liberdade.
O processo se arrasta entre várias instâncias e recursos, até chegar à Suprema Corte, onde Adams se associa à defesa dos africanos detidos. Com a sentença da Suprema Corte, a história entra em seu capítulo final, também muito sumário no filme.
O segundo escravo do comandante morto é devolvido a Cuba; por ter nascido na ilha, sua escravidão é considerada legítima. Os demais prisioneiros, apesar de libertados, enfrentam vários meses de dificuldades até conseguirem os recursos para retornar à África, acompanhados de missionários cristãos. Um deles se suicida. A maioria encontra suas aldeias destroçadas e seus familiares desaparecidos, provavelmente capturados ou mortos por outros traficantes clandestinos.
Nos Estados Unidos, o cativeiro dos escravos locais resistiu duas décadas e meia adicionais. Em Cuba e no Brasil, mais tempo ainda. Depois de extinta, a escravidão foi substituída no sul dos Estados Unidos por regimes de segregação racial, que só desapareceriam nos anos 60 de nosso século, após o movimento dos direitos civis.
E, apesar desse indiscutível avanço, lá, como nas três Américas, a população de ascendência africana continua enfrentando preconceitos e discriminação econômica.
É positivo, portanto, que um cineasta com o prestígio de Spielberg desencave um pouco essa história e suas sequelas. Quando se fala de escravidão, não se está, infelizmente, discorrendo sobre um passado longínquo e completamente superado.
No Brasil, quatro dos cinco séculos de nossa trajetória transcorreram à sombra desse ignominioso regime de trabalho. Nossas elites ainda carregam as marcas da herança escravocrata em sua visão de uma sociedade formada por cidadãos de 1ª, 2ª e 3ª classes.
Os cativos de origem africana prestaram uma contribuição decisiva a nossa economia e a nossa cultura. Mas isso é tão pouco reconhecido que até hoje seus descendentes são os brasileiros que enfrentam as maiores dificuldades para se instruir, encontrar um trabalho estável ou garantir uma remuneração adequada. Pouco consola saber que trabalhadores de outras ascendências compartilham algumas dessas dificuldades.
Quando a sociedade brasileira se empenha em alcançar a estabilização duradoura de sua moeda e sonha com a retomada do crescimento acelerado de sua economia, é preciso não perder de vista o objetivo superior que deve nortear esses esforços: criar condições para que a nação possa saldar a maior dívida que contraiu ao longo de sua história -a dívida social com seus trabalhadores e cidadãos pobres, sejam eles de origem indígena, africana, européia, asiática ou conclusivamente brasileira.

Filme: Amistad Diretor: Steven Spielberg Onde: Interlar Aricanduva e ABC Plaza Shopping


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