São Paulo, sábado, 14 de março de 1998

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Teoria e prática do "womurang' ou bumerangue

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

A palavra foi dicionarizada recentemente com pronúncia e grafia brasileira. O artefato foi popularizado no após-guerra quando o mundo efetivamente descobriu as civilizações do Oceano Pacífico.
O "womurang" dos aborígenes australianos que os colonizadores ingleses chamaram de "boomerang" é um extraordinário instrumento de caça e guerra tanto na versão "retornável" (que volta para o arremessador) como na versão sem retorno, menos sofisticada, mas de grande precisão.
A aerodinâmica não existia como ciência, mas os primeiros utilizadores do bumerangue, empiricamente, descobriram que o formato curvo do objeto, a combinação de ângulos, superfícies convexas e lisas, mais a força e o movimento de arremesso produziriam o sonho dos inventores de armas: a reutilização contínua.
Afora algumas tentativas infrutíferas dos fabricantes de jogos ao ar livre, o bumerangue, entre nós, foi adotado apenas no plano retórico. Mais uma metáfora de guerra para os jogos da vida: castigo, pronto pagamento, retorno com a mesma moeda, retroação.
O pequeno bumerangue é a síntese em osso, madeira ou plástico do terceiro enunciado newtoniano -a cada ação corresponde uma reação em sentido contrário de igual intensidade- que, por sua vez, remonta aos paradoxos da dialética grega e Hegel, na sua tríade, designou de antítese.
Na filosofia cotidiana o bumerangue é a materialização do efeito perverso. A fatura que um dia será preciso encarar. Na farmacologia das bulas de remédios -da qual somos hoje especialistas- mencionam-se os "efeitos colaterais" tão nocivos quanto os terapêuticos.
Qualquer que seja a angulação ou terminologia a verdade está com os trágicos: não há triunfo que não contenha o núcleo da sua própria negação. Também na adversidade podem estar germinando os caminhos da sua superação. A aventura humana consiste basicamente em perceber o jogo das forças adversas geradas por atos ou eventos.
Os gurus de auto-ajuda e os magos do sucesso ganham fortunas para dizer apenas isso. Empacam diante da impossibilidade de oferecer uma fórmula para avaliar o potencial de resposta de cada ação.
O bumerangue dominou a política nacional antes mesmo de anunciados os resultados da convenção nacional do PMDB. Conhecendo os procedimentos empregados em conclaves anteriores pelo ex-governador Orestes Quércia o grupo governista resolveu enfrentar suas claques com claque mais aguerrida, a velha truculência com truculência maior.
Os vitoriosos do PMDB não perceberam os efeitos perversos ou colaterais que uma vitória no grito produziria num processo político tão frágil e imaturo como o nosso. Inspirados pelo espírito da Copa do Mundo, estavam de olho no placar -importava apenas vencer.
Esqueceram-se dos dois Pirros (Pyrron e Pyrros): o primeiro, pai do ceticismo, duvidava de todas as aparências; o outro, rei, ganhou dos romanos graças aos elefantes para, em seguida, ser derrotado: sinônimo do triunfo maldito.
Não divisaram a imanência do bumerangue, a inevitabilidade da resposta, a reversibilidade dos resultados, o fermento do ressentimento. Em outras palavras, a aerodinâmica das ações humanas.
O pior nas contendas é a identificação com o adversário. Quando um dos lados esquece seus diferenciais e assume características e métodos do oponente, estamos numa perigosa situação-limite.
O PSDB foi criado a partir de uma dissidência ética e programática dentro do PMDB com Orestes Quércia, caudilhesco e violento.
O apoio quase ostensivo do ex-governador a Jânio Quadros na disputa com Fernando Henrique pela prefeitura de São Paulo e a forma com que o mesmo Quércia forçou o então presidente José Sarney a sepultar o Plano Cruzado em benefício das suas ambições são exemplos dessa Orestíada paulista, nada airosa.
O uso que fez das tropas de choque nas convenções peemedebistas para garantir uma hegemonia que contrariava as sentenças das urnas e dos tribunais não pode servir de parâmetro aos opositores do quercismo dentro do partido.
E, se insistem em se identificar com o adversário, cabe aos que saíram do PMDB se distanciar de tais comportamentos. Coligações políticas não implicam em adesão orgânica, caso contrário seria uma fusão. Indispensável uma demarcação de métodos e princípios.
A "real-politik" tem limites impostos pela própria "real-politik". Se o governo reclama contra ações antidemocráticas nas manifestações de rua e nas invasões ilegais de propriedades privadas ou públicas, não pode conviver, mesmo indiretamente, com o recurso da arruaça e do motim. Essa é uma opção primária.
A campanha eleitoral que ora começa tem características inéditas em nossa história por ser a primeira dentro do estatuto da reeleição para o Executivo. Razão pela qual deve reger-se dentro de parâmetros inquestionáveis em todas as suas etapas.
Qualquer ação capaz de realimentar a insanidade pode atravancar um processo que todos os legitimamente envolvidos desejam fluente e impoluto. As ensandecidas intervenções de Ciro Gomes e Roberto Requião (este na própria convenção do PMDB) fazem antever o nível do que vem por estas bandas. Açular os baixos instintos de quem só dispõe de baixos instintos pode produzir episódios pouco edificantes. Não se trata apenas de padrões de compostura e urbanidade, mas do comprometimento de aspectos vitais do processo democrático.
A democracia, não custa repetir, trata dos meios, os fins ficam por conta das diferentes correntes de opinião. Um truncamento nos meios dentro de uma experiência que depois do regime militar só funcionou duas vezes e agora ganha especificidades, coloca em risco sua continuidade. Traz à lembrança fissuras que começam insignificantes e terminam com rupturas.
A esta altura, menos de uma semana depois da convenção, impossível divisar se o bumerangue provocado por aquela espécie de vitória já completou o arco e começa a trajetória de volta em direção do arremessador. Também não dá para classificar se é do tipo retornável ou se o ato deflagrador foi suficientemente forte para trazê-lo de volta.
Importa apenas lembrar a imponderabilidade dos desatinos.



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