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Teoria e prática do "womurang' ou bumerangue
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
A palavra foi dicionarizada
recentemente com pronúncia e
grafia brasileira. O artefato foi
popularizado no após-guerra
quando o mundo efetivamente
descobriu as civilizações do
Oceano Pacífico.
O "womurang" dos aborígenes australianos que os colonizadores ingleses chamaram de
"boomerang" é um extraordinário instrumento de caça e
guerra tanto na versão "retornável" (que volta para o arremessador) como na versão sem
retorno, menos sofisticada,
mas de grande precisão.
A aerodinâmica não existia
como ciência, mas os primeiros
utilizadores do bumerangue,
empiricamente, descobriram
que o formato curvo do objeto,
a combinação de ângulos, superfícies convexas e lisas, mais
a força e o movimento de arremesso produziriam o sonho
dos inventores de armas: a
reutilização contínua.
Afora algumas tentativas infrutíferas dos fabricantes de
jogos ao ar livre, o bumerangue, entre nós, foi adotado
apenas no plano retórico. Mais
uma metáfora de guerra para
os jogos da vida: castigo, pronto pagamento, retorno com a
mesma moeda, retroação.
O pequeno bumerangue é a
síntese em osso, madeira ou
plástico do terceiro enunciado
newtoniano -a cada ação
corresponde uma reação em
sentido contrário de igual intensidade- que, por sua vez,
remonta aos paradoxos da
dialética grega e Hegel, na sua
tríade, designou de antítese.
Na filosofia cotidiana o bumerangue é a materialização
do efeito perverso. A fatura
que um dia será preciso encarar. Na farmacologia das bulas
de remédios -da qual somos
hoje especialistas- mencionam-se os "efeitos colaterais"
tão nocivos quanto os terapêuticos.
Qualquer que seja a angulação ou terminologia a verdade
está com os trágicos: não há
triunfo que não contenha o
núcleo da sua própria negação. Também na adversidade
podem estar germinando os
caminhos da sua superação. A
aventura humana consiste basicamente em perceber o jogo
das forças adversas geradas
por atos ou eventos.
Os gurus de auto-ajuda e os
magos do sucesso ganham fortunas para dizer apenas isso.
Empacam diante da impossibilidade de oferecer uma fórmula para avaliar o potencial
de resposta de cada ação.
O bumerangue dominou a
política nacional antes mesmo
de anunciados os resultados
da convenção nacional do
PMDB. Conhecendo os procedimentos empregados em conclaves anteriores pelo ex-governador Orestes Quércia o
grupo governista resolveu enfrentar suas claques com claque mais aguerrida, a velha
truculência com truculência
maior.
Os vitoriosos do PMDB não
perceberam os efeitos perversos
ou colaterais que uma vitória
no grito produziria num processo político tão frágil e imaturo como o nosso. Inspirados
pelo espírito da Copa do Mundo, estavam de olho no placar
-importava apenas vencer.
Esqueceram-se dos dois Pirros (Pyrron e Pyrros): o primeiro, pai do ceticismo, duvidava
de todas as aparências; o outro, rei, ganhou dos romanos
graças aos elefantes para, em
seguida, ser derrotado: sinônimo do triunfo maldito.
Não divisaram a imanência
do bumerangue, a inevitabilidade da resposta, a reversibilidade dos resultados, o fermento do ressentimento. Em outras
palavras, a aerodinâmica das
ações humanas.
O pior nas contendas é a
identificação com o adversário. Quando um dos lados esquece seus diferenciais e assume características e métodos
do oponente, estamos numa
perigosa situação-limite.
O PSDB foi criado a partir de
uma dissidência ética e programática dentro do PMDB
com Orestes Quércia, caudilhesco e violento.
O apoio quase ostensivo do
ex-governador a Jânio Quadros na disputa com Fernando
Henrique pela prefeitura de
São Paulo e a forma com que o
mesmo Quércia forçou o então
presidente José Sarney a sepultar o Plano Cruzado em benefício das suas ambições são
exemplos dessa Orestíada paulista, nada airosa.
O uso que fez das tropas de
choque nas convenções peemedebistas para garantir uma hegemonia que contrariava as
sentenças das urnas e dos tribunais não pode servir de parâmetro aos opositores do
quercismo dentro do partido.
E, se insistem em se identificar com o adversário, cabe aos
que saíram do PMDB se distanciar de tais comportamentos. Coligações políticas não
implicam em adesão orgânica,
caso contrário seria uma fusão. Indispensável uma demarcação de métodos e princípios.
A "real-politik" tem limites
impostos pela própria
"real-politik". Se o governo reclama contra ações antidemocráticas nas manifestações de
rua e nas invasões ilegais de
propriedades privadas ou públicas, não pode conviver, mesmo indiretamente, com o recurso da arruaça e do motim.
Essa é uma opção primária.
A campanha eleitoral que
ora começa tem características
inéditas em nossa história por
ser a primeira dentro do estatuto da reeleição para o Executivo. Razão pela qual deve reger-se dentro de parâmetros
inquestionáveis em todas as
suas etapas.
Qualquer ação capaz de realimentar a insanidade pode
atravancar um processo que
todos os legitimamente envolvidos desejam fluente e impoluto. As ensandecidas intervenções de Ciro Gomes e Roberto Requião (este na própria
convenção do PMDB) fazem
antever o nível do que vem por
estas bandas. Açular os baixos
instintos de quem só dispõe de
baixos instintos pode produzir
episódios pouco edificantes.
Não se trata apenas de padrões
de compostura e urbanidade,
mas do comprometimento de
aspectos vitais do processo democrático.
A democracia, não custa repetir, trata dos meios, os fins
ficam por conta das diferentes
correntes de opinião. Um truncamento nos meios dentro de
uma experiência que depois do
regime militar só funcionou
duas vezes e agora ganha especificidades, coloca em risco sua
continuidade. Traz à lembrança fissuras que começam insignificantes e terminam com
rupturas.
A esta altura, menos de uma
semana depois da convenção,
impossível divisar se o bumerangue provocado por aquela
espécie de vitória já completou
o arco e começa a trajetória de
volta em direção do arremessador. Também não dá para
classificar se é do tipo retornável ou se o ato deflagrador foi
suficientemente forte para trazê-lo de volta.
Importa apenas lembrar a
imponderabilidade dos desatinos.
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