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Ratinho e a contradição kantiana
NELSON HOINEFF
especial para a Folha
A cada ponto do Ibope corresponde mais um adjetivo: mundo-cão, baixo, bizarro. O fato está
nos picos de audiência, mas o
grande corolário do caso Ratinho
está menos ligado ao apresentador
do que à dificuldade da mídia de
entender um fato novo. Talvez
fosse proveitoso cogitar que o verdadeiramente bizarro seja a fome
de rotular o que apenas é diferente.
As etiquetas sobram onde o conhecimento está em falta. Aberrações existem em dezenas de programas de televisão que não saem
do traço. Por que o público escolheria um? Ratinho traz casais em
conflito, arma abertamente as situações extremas e sai de cena,
deixando o ser humano desfilar o
seu patético. Nesse caminho, subverte o que está à sua frente: marcações, horários, relações com o
estúdio. Letterman fazia isso, nos
seus melhores momentos de "outsider" ainda na NBC. Faustão teve
um rápido estalo, nos velhos e
bons momentos do "Perdidos na
Noite". Como nas origens de Letterman e Faustão, mas bem ao seu
estilo, o que Ratinho promove todos os dias é uma releitura do abjeto. O importante não é o que está
acontecendo, mas como ele faz isso acontecer.
É verdade, todos estão lá: o homem grávido, o menino de duas
cabeças, o operário que vive com a
mulher e o travesti. Todos, e mais
o menino que viu a Virgem, estavam também em Fellini. Mas é
preciso vê-los pela filtragem de Nino Rota, ou então vamos comer
mosca -e acabamos acreditando
que Saraghina é uma "freak" cunhada para ganhar o povão.
"Talvez a comunicação de massa
e a audiência de massa acabem
provando ser anomalias históricas", dizia Russell Newmann.
Mais anômalo ainda é com frequência a interpretação dessa audiência. Os idiotas da objetividade
olham para esses números com a
estupidez de quem tem todas as
respostas prontas. "Ganha ponto
porque é vulgar". Pronto. Está explicado o Ratinho.
Perniciosa é a pasteurização que
essa ideologia sustenta. Ratinho
faz um programa para a audiência
massiva e deixa transparente sua
forma de lidar com a anomalia.
Chama Silvio Santos e Marluce no
ar para dizer que está dando "um
banho neles". Silvio, pelo menos,
adoraria fazer a mesma coisa -e
deve estar se perguntando por que
não pensou nisso antes. A civilização dessa anomalia newmanniana
requer uma relação anárquica
com o caráter anárquico desses
mecanismos de medição. Ratinho
diverte-se com isso, da mesma
forma como se diverte com a anarquia que instaura. Fisicamente
abana as mãos e sai meio de lado,
como se não tivesse nada a ver
com o assunto. Veio para confundir, não para explicar.
Quem primeiro veio para confundir, não para explicar, levou
anos tomando pau até ser redescoberto pelos tropicalistas. O público já tinha tirado há dez anos suas
conclusões. O curioso é que medições de audiência servem, na
maioria das vezes, para aferir o
grau de identificação de um momento televisivo em relação a outros já consagrados. Legitimar a
mesmice, por assim dizer. Quanto
mais próximo o primeiro estiver
do segundo, maior a sua pontuação. A televisão genérica, massiva,
fia-se, em outras palavras, na reiteração do que já foi aceito. Um
programa é tão melhor quanto
mais se parecer com outro que já
existe; quanto mais próximo estiver do ideário filosófico e estético
do que já se convencionou ser
"bom". Televisão boa, segundo esse ideário, é a que traz a segurança
de já ter sido legitimada antes.
Ratinho transgride essa idéia. É
politicamente incorreto, ainda
que crie um personagem de invulgar ambiguidade: por um lado ele
se diverte com o trágico; por outro, se solidariza com a tragédia.
Pode se facilmente interpretar à
luz de Kant a contradição que ele
levanta, admitindo a presença de
gostos distintos mas tentando chegar a todos os gostos.
A contradição, claro, não é do
Ratinho, mas da TV genérica, último degrau de um processo de
massificação negativo. Pela definição de seus objetivos, a televisão
genérica é tão melhor quanto mais
estupidamente parecida entre si.
Vez por outra aparece alguém para torná-la diferente. O público
grita que gostou. Mas o império da
burrice vocifera pela hegemonia
da mediocridade -até, anos depois, a história confirmar que o
público estava certo.
Nelson Hoineff é jornalista, diretor do Documento Especial (Bandeirantes) e Primeiro Plano
(Cultura), autor de "TV em Expansão" (ed. Record)
e "A Nova Televisão - Desmassificação e o Impasse das Grandes Redes" (ed. Relume-Dumará).
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