São Paulo, sexta-feira, 14 de abril de 2000


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FESTA PORTUGUESA

Portugal celebra Descobrimento sem culpa

Reprodução
"Engenho real", de Frans Post,que está na mostra "A Construção do Brasil"


CYNARA MENEZES
enviada especial a Lisboa

Enquanto por aqui as opiniões se dividem entre os que consideram necessárias e desnecessárias as comemorações, Portugal celebra os 500 anos do Descobrimento do Brasil sem culpa e com uma programação menos festeira e mais culta.
Os organizadores dos eventos portugueses estranham certo "esvaziamento" na programação brasileira, ainda com eventos em aberto -na agenda de Portugal, toda fechada, apenas alguns concertos que acontecem no Brasil com artistas dos dois países ainda aparecem sem local definido.
Segundo os números oficiais, o país gastou cerca de R$ 30 milhões nos últimos três anos para celebrar a data -metade dos aproximadamente R$ 60 milhões que o Brasil terá investido entre o ano passado e este ano, principalmente na recuperação de cidades e monumentos históricos.
A diferença está no enfoque: se no Brasil a comemoração ganhou um tom mais popular desde que a organização dos eventos passou do Ministério das Relações Exteriores para o do Esporte e do Turismo, a portuguesa optou por uma mescla entre o festivo e o acadêmico.
O destaque da programação dos 500 anos em Portugal são as exposições de caráter histórico-cultural, como "A Construção do Brasil", em Lisboa, com documentos históricos que incluem o mapa brasileiro que figurava no Atlas Miller, de 1519, cedido pela Biblioteca Nacional da França, ou o folheto "Mundus Novus", atribuído a Américo Vespúcio.
São mapas, documentos, pinturas, tapeçarias, jóias, moedas e outros objetos cedidos especialmente para a mostra por 70 entidades de sete países. De acordo com o presidente da Comissão dos Descobrimentos Portugueses, o historiador Joaquim Romero de Magalhães, para trazer a exposição ao Brasil seriam necessários R$ 5 milhões, além da disponibilidade na agenda das entidades para cessão do material.
Embora cuidadosa, de bom gosto e organizada, a programação também suscita, como aqui, críticas: em Lisboa se comenta, à boca pequena, que Portugal celebra a si próprio. Afinal, a comissão, criada em 96, comemora os descobrimentos feitos pelo país em geral -e o da frota de Pedro Álvares Cabral dentro desse contexto. Ou seja, seria a comemoração não do país revelado ao mundo, mas do feito português.
Romero de Magalhães aceita o fato. "Com certeza que sim, o Brasil também está comemorando a si próprio, não a Portugal. Mas tudo isso que estamos fazendo é ainda uma homenagem ao Brasil. Acho até que o Brasil tem mais razões para comemorar do que Portugal, é ele quem faz anos", diz.
A uma certa timidez no Brasil em comemorar "o ser colonizado", o historiador contrapõe a "injustiça" de que protestos como o marcado para Porto Seguro no dia 22 atinjam também os portugueses. "Não há o que desculpar, todas as colonizações são más, mas daquela resultou algo extraordinário que se chama Brasil. E os protestos dizem respeito ao Brasil atual, não à colonização portuguesa", defende.
"O que nós, portugueses, temos com os sem-terra? Que a estrutura fundiária decorre da colonização, tudo bem, mas em 180 anos de independência já se poderia ter resolvido isso. A Mata Atlântica também só começa a ser devastada após a introdução da serra mecânica. E até escravidão foi extinta em Portugal antes, em 1760."
O diretor do Museu Nacional de Etnologia, o antropólogo Joaquim Pais de Brito, vai mais longe e aponta um certo "complexo de ex-colonizado" no Brasil pós-500 anos de "achamento", como dizem os organizadores das comemorações por lá.
"Acho que há um esvaziamento em torno das comemorações. O Brasil adquiriu uma dimensão tal que já teria tido meio de se libertar desse complexo", afirmou. "O pior é que basta isso estar presente em uma pessoa para atrapalhar todo o processo."
Brito, que organiza para setembro uma grande mostra sobre os índios brasileiros e sua relação com o homem branco europeu ("Os Índios, Nós"), defende que é "extremamente redutor" dizer que a colonização portuguesa tenha sido mais suave ou mais dura.
"Houve muita violência, correu muito sangue e houve muita miscigenação. O marquês de Pombal fala da colonização pelo casamento. O que se costuma esquecer, porém, é que nos séculos 19 e 20 também se dizimaram muitos índios", diz. "As razões dos protestos dos índios de agora, se forem relacionadas à colonização, são ficções. Eles protestam por sua situação hoje."
Brito vê razões para a celebração pura e simples. "Se um país começa a se construir com uma mescla de países a partir de uma determinada data, sim, acho que há motivos para comemorar."
Apenas alguns dos eventos programados em Portugal virão ao Brasil, por causa do custo do transporte e do seguro para as obras de arte e documentos.
A mostra "Leituras da Carta de Pero Vaz de Caminha", com a visão de artistas portugueses sobre o documento, virá em setembro para o Itamaraty, em Brasília. A exposição sobre os índios também pode vir a acontecer no Rio, mas ainda não está confirmada.
Em São Paulo, na Pinacoteca do Estado, em setembro, será aberta uma exposição com instrumentos científicos oriundos de universidades portuguesas, utilizados nas expedições feitas ao interior do Brasil nos seus primeiros séculos depois de descoberto. Alguns concertos e os congressos "Portugal-Brasil 2000" também acontecem aqui e lá.
No mais, é como provoca Joaquim Romero de Magalhães, na defesa do que Portugal tem a oferecer: "O que temos procurado é sair da retórica, da conversa fiada, para fazer coisas concretas. O Brasil é prioridade da política externa portuguesa. Ou não nos empenharíamos numa comemoração que, afinal, é dispendiosa."


A jornalista Cynara Menezes viajou a Portugal a convite do Icep (Investimentos, Comércio e Turismo de Portugal)

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