São Paulo, sexta-feira, 14 de abril de 2000


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Conspirando contra o quê?

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Contra o que conspira a Conspiração Filmes? Essa é talvez a primeira pergunta que inspiram os filmes dessa produtora, provavelmente a única que chega, no cinema brasileiro atual, a configurar uma corrente.
A Conspiração trabalha, antes de mais nada, contra a tradição que o cinema novo consagra, a da estética da fome e suas decorrências. Existe uma outra tradição no Brasil a considerar, que não é propriamente industrial (idéia lançada e relançada, que nunca foi entre nós mais que uma caricatura), mas a do cinema publicitário.
A publicidade firmou-se como o cinema da "qualidade brasileira" junto ao público de classe média justamente por evitar aquilo que esse público considerava como deficiências da produção nacional. Por serem anúncios, a luz não era a luz do Brasil, mas dos produtos veiculados. A produção também não remetia às agruras do cotidiano, mas ao universo de consumo (isto é, um mundo entre parênteses).
A supervalorização do cinema publicitário no Brasil deveria ser, em todo caso, tema de um estudo antropológico, antes de cinematográfico. O fato é que os jovens cineastas da Conspiração embarcaram nessa via que pode até funcionar durante 30 ou 60 segundos, mas se aguenta mal em um longa-metragem. Porque a pergunta que o espectador de cinema pode legitimamente se fazer ao longo de "Gêmeas" é: o que, afinal, este filme está anunciando?
A trama explora a semelhança entre duas gêmeas idênticas, Iara e Marilena, a partir de um conto de Nelson Rodrigues, com todas as decorrências presumíveis (uma é introvertida, a outra é saidinha, trocam de namorado o tempo todo, até que se apaixonam pelo mesmo homem etc.).
É um partido que pode ser fértil, como bem mostram "As Irmãs Diabólicas", de Brian De Palma, ou "Gêmeos, Mórbida Semelhança", de David Cronenberg.
Não será justo esperar tanto. Mas, à força de aspirar a ser antes de tudo um "filme bem feito", "Gêmeas" termina apenas por ser simplesmente um filme cosmético. Seu sentido é expor a suposta excelência da cenografia, dos figurinos, da fotografia, da atriz, como se a "mise-en-scène" fosse a soma dessas particularidades e não, inversamente, aquilo que lhes dá unidade e sentido.
Em todo caso, se o ponto da Conspiração é esse, nada a discutir: o filme é bem feito. E se apóia, no mais, em uma belíssima interpretação de Fernanda Torres.
Mas o público que reivindica um cinema "bem feito" é o mesmo que costuma reclamar da falta de idéia de nossos roteiros (embora esse público em geral evite ver filmes brasileiros). E, em matéria de roteiro, "Gêmeas" tende à nadificação de Nelson Rodrigues. Não é uma atitude inédita. Rodrigues foi, por exemplo, um nacionalista feroz. Hoje é lido e incensado como se essa característica não fizesse parte de seu pensamento. Cita-se -ou copia-se- seu fraseado a três por dois, como se ele não tivesse relação com alguma ordem de idéias.
Rodrigues foi um moralista, um católico fervoroso e trágico, para quem o homem nunca estaria à altura dos projetos de Deus. De certa forma, era um jansenista carioca. O que há disso em "Gêmeas"? Nada, a não ser uma intriga, um pretexto que à força de trair o dramaturgo, não se aguenta nem pela intriga.
Intriga que, no filme, lança todas as suas premissas nos primeiros minutos, deixando tanto a evolução como o epílogo a descoberto -repetições aborrecidas daquelas premissas. Não é propriamente um equívoco técnico (embora também o seja, subsidiariamente): é uma maneira de vivenciar o cinema que ali se cristaliza. Maneira que não leva a lugar nenhum, como o filme bem demonstra.


Avaliação:  

Filme: Gêmeas
Diretor: Andrucha Waddington
Produção: Brasil, 1999
Com: Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Evandro Mesquita e Francisco Cuoco
Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco 2, Lumière 1 e circuito


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