|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Conspirando contra o quê?
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Contra o que conspira a Conspiração Filmes? Essa é talvez a primeira pergunta que inspiram os
filmes dessa produtora, provavelmente a única que chega, no cinema brasileiro atual, a configurar
uma corrente.
A Conspiração trabalha, antes
de mais nada, contra a tradição
que o cinema novo consagra, a da
estética da fome e suas decorrências. Existe uma outra tradição no
Brasil a considerar, que não é propriamente industrial (idéia lançada e relançada, que nunca foi entre nós mais que uma caricatura),
mas a do cinema publicitário.
A publicidade firmou-se como
o cinema da "qualidade brasileira" junto ao público de classe média justamente por evitar aquilo
que esse público considerava como deficiências da produção nacional. Por serem anúncios, a luz
não era a luz do Brasil, mas dos
produtos veiculados. A produção
também não remetia às agruras
do cotidiano, mas ao universo de
consumo (isto é, um mundo entre
parênteses).
A supervalorização do cinema
publicitário no Brasil deveria ser,
em todo caso, tema de um estudo
antropológico, antes de cinematográfico. O fato é que os jovens
cineastas da Conspiração embarcaram nessa via que pode até funcionar durante 30 ou 60 segundos, mas se aguenta mal em um
longa-metragem. Porque a pergunta que o espectador de cinema
pode legitimamente se fazer ao
longo de "Gêmeas" é: o que, afinal, este filme está anunciando?
A trama explora a semelhança
entre duas gêmeas idênticas, Iara
e Marilena, a partir de um conto
de Nelson Rodrigues, com todas
as decorrências presumíveis
(uma é introvertida, a outra é saidinha, trocam de namorado o
tempo todo, até que se apaixonam pelo mesmo homem etc.).
É um partido que pode ser fértil,
como bem mostram "As Irmãs
Diabólicas", de Brian De Palma,
ou "Gêmeos, Mórbida Semelhança", de David Cronenberg.
Não será justo esperar tanto.
Mas, à força de aspirar a ser antes
de tudo um "filme bem feito",
"Gêmeas" termina apenas por ser
simplesmente um filme cosmético. Seu sentido é expor a suposta
excelência da cenografia, dos figurinos, da fotografia, da atriz,
como se a "mise-en-scène" fosse a
soma dessas particularidades e
não, inversamente, aquilo que
lhes dá unidade e sentido.
Em todo caso, se o ponto da
Conspiração é esse, nada a discutir: o filme é bem feito. E se apóia,
no mais, em uma belíssima interpretação de Fernanda Torres.
Mas o público que reivindica
um cinema "bem feito" é o mesmo que costuma reclamar da falta
de idéia de nossos roteiros (embora esse público em geral evite
ver filmes brasileiros). E, em matéria de roteiro, "Gêmeas" tende à
nadificação de Nelson Rodrigues.
Não é uma atitude inédita. Rodrigues foi, por exemplo, um nacionalista feroz. Hoje é lido e incensado como se essa característica
não fizesse parte de seu pensamento. Cita-se -ou copia-se-
seu fraseado a três por dois, como
se ele não tivesse relação com alguma ordem de idéias.
Rodrigues foi um moralista, um
católico fervoroso e trágico, para
quem o homem nunca estaria à
altura dos projetos de Deus. De
certa forma, era um jansenista carioca. O que há disso em "Gêmeas"? Nada, a não ser uma intriga, um pretexto que à força de
trair o dramaturgo, não se aguenta nem pela intriga.
Intriga que, no filme, lança todas as suas premissas nos primeiros minutos, deixando tanto a
evolução como o epílogo a descoberto -repetições aborrecidas
daquelas premissas. Não é propriamente um equívoco técnico
(embora também o seja, subsidiariamente): é uma maneira de vivenciar o cinema que ali se cristaliza. Maneira que não leva a lugar
nenhum, como o filme bem demonstra.
Avaliação:
Filme: Gêmeas
Diretor: Andrucha Waddington
Produção: Brasil, 1999
Com: Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Evandro Mesquita e Francisco Cuoco
Quando: a partir de hoje no Espaço Unibanco 2, Lumière 1 e circuito
Texto Anterior: A poligamia é o tema de dois filmes Próximo Texto: Gastronomia: A Páscoa que acaba em pizza, sashimi e ravioli Índice
|