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"KAPO"
Obra tenta descrever o indescritível
ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas
"Para qualquer um que não estava lá... é impossível descrever."
A frase, de um sobrevivente do
gueto de Lodz, resume um dilema
comum: quem viveu aquilo não
precisa de descrição; quem não
viveu não tem como imaginar.
A tentativa, apesar de tudo, de
descrever o indescritível marca o
documentário "Kapo", de Dan
Setton e Tor Ben-Mayor, e define
suas ambições e limites. "Kapo"
será exibido hoje em São Paulo,
no festival É Tudo Verdade.
"Kapo" vem do italiano "capo"
(cabeça ou chefe). Era o funcionário mais baixo da hierarquia nazista: um judeu convidado ou
compelido a chefiar os outros,
nos guetos e nos campos de concentração.
Os kapos são lembrados com
um misto de repulsa (pelas violências infligidas) e vergonha (pelo caráter colaboracionista). Todos justificam o que fizeram como opção de sobrevivência; e todos afirmam que as coisas teriam
sido piores sem eles.
São figuras como o maestro Hanek Barenblatt, kapo de um gueto
polonês, hoje exercendo a música
na Alemanha, ou Magda Hellinger, do campo de extermínio de
Auschwitz, agora morando na
Austrália, ou Vera Alexander, sua
assistente, que vive em Israel.
Imagens de arquivo deixam
qualquer um sem palavras: os
trens de carga abarrotados de
gente, as rampas na chegada ao
campo, as pilhas de objetos, as
montanhas de cabelo, as multidões de pessoas sem roupa, o
olhar de incompreensão de um
homem ou mulher, com o uniforme listrado. O que era coletivo e
impessoal ganha humanidade
nessas entrevistas, 50 anos depois.
A desumanização do judeu -sua
transformação em "raça"- tem
de ser resistida retrospectivamente, quando se dá voz e rosto a
quem foi privado de tudo, incluindo a voz e o rosto. Uma diferença de expressão, aqui, tem força de argumento.
Autojustificativas à parte, a diferença humana entre os kapos e
suas vítimas fica evidente desde
logo. Uns "explicam", com maior
ou menor frieza, e aparente boa
consciência; os outros lembram,
com um fogo que queima nas vírgulas e espaços da fala.
Que o filme não resista às emoções e empreste (entre outras coisas) uma trilha sonora hollywoodiana ao que não é ficção de
Hollywood indica a dificuldade
de narrar isso que não pode ser
narrado. Entre imagens e palavras, há uma virtual proibição. É
isso que a memória tem de quebrar, sob pena de se perder nas
meras ilusões de um filme, ou na
explicação que desculpa.
Indecidido no juízo humano, o
documentário também não chega
a se decidir entre a sabedoria convencional da narrativa e outra,
mais difícil, nesse caso talvez imprescindível.
"Eu estava lá. Eu testemunhei",
diz o sobrevivente do gueto de
Lodz. Testemunhar a testemunha
é o mínimo, e talvez o máximo,
que se pode fazer agora, para garantir a sua humanidade. E a nossa. Que o filme nos obrigue, também, a testemunhar perpetradores, com alguma medida de compreensão, é uma virtude desconfortável, talvez a maior, num documentário confortável demais
com sua compreensão e sua virtude.
Avaliação:
Filme: Kapo
Direção: Dan Setton e Tor Ben-Mayor, Israel, 1999, 55 min., vídeo
Quando: hoje, às 19h
Onde: Cinesesc (r. Augusta, 2.075, Jardins, tel. 0/xx/11/3064-1668)
Quanto: entrada franca
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