São Paulo, quarta-feira, 14 de abril de 2004

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Jazz sem mistura

Divulgação
A cantora Sheila Jordan, destaque da edição deste ano do Chivas Jazz Festival


Festival chega à 5ª edição sem apelar ao pop e traz Sheila Jordan

CARLOS CALADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Até cinco anos atrás, poucos acreditariam que um festival de jazz poderia vingar no Brasil sem fazer concessões à música pop. Essa é a façanha do Chivas Jazz Festival, que anuncia sua quinta edição, recheada de atrações exclusivamente jazzísticas. Os ingressos para os shows -de 5 a 8 de maio, em São Paulo e no Rio- começam a ser vendidos hoje na capital paulistana.
No elenco das quatro noites, nomes inéditos no país e de alto conceito na cena atual, como o trompetista Tom Harrell, o pianista Andrew Hill, a big band Sun Ra Arkestra e os bateristas Louis Hayes e Bobby Previte, indicam que o festival mantém a essência das edições anteriores.
Outro destaque do evento é a cantora Sheila Jordan. Absurdamente inédita no Brasil, inclusive em discos, essa veterana norte-americana de Detroit vem figurando há duas décadas nos primeiros postos das eleições de melhores do ano das principais publicações especializadas.
"Meu guru musical sempre foi Charlie Parker. Só percebi que tipo de música eu gostaria de cantar depois de ouvi-lo", disse à Folha, por telefone, de Nova York, confirmando sua identificação com o saxofonista e criador do estilo bebop, na década de 40. "Gostava tanto de Parker que até me casei com o pianista dele", brinca a cantora, referindo-se ao músico Duke Jordan, seu ex-marido.
Ela conta que, diferentemente de muitas cantoras, não chegou a imitar outras intérpretes quando começou a cantar. Seu sofisticado e emotivo estilo pessoal é baseado nos improvisos dos músicos do bebop. "Quase não tinha dinheiro, mas, quando arrumava uns trocados, comprava discos de instrumentistas, mesmo adorando cantoras. Eu as ouvia, mas jamais tentava cantar como elas. Quem conseguiria cantar como Billie Holiday ou Sarah Vaughan?"
Além da pobreza da família e do alcoolismo da mãe, Sheila teve de enfrentar outros problemas na adolescência para poder se dedicar ao jazz. "Detroit era um lugar muito racista. Fui levada à delegacia várias vezes, porque os policiais me viam andando pela rua com músicos negros, que eram meus amigos", conta.
E relembra um episódio que ainda a revolta: "Eu tinha uns 18 ou 19 anos, quando um investigador me fez sair de um pequeno clube, onde nem vendiam bebidas alcoólicas. Ele me disse: "Se eu encontrasse minha filha num lugar como este, eu a carregaria para casa e estouraria os miolos dela com esta arma". Eu ouvi e pensei que, apesar de usar um uniforme, aquele sujeito era doente".
Cenas violentas como essa, além da vontade de conhecer pessoalmente seus ídolos do bebop, levaram Sheila a se mudar para Nova York, no início dos anos 50. Lá tomou aulas com o pianista e compositor Lennie Tristano, um dos pioneiros do jazz de vanguarda, e passou a se apresentar em clubes de Manhattan.
Porém nem mesmo os elogios dos críticos a "Portrait of Sheila" (Blue Note), seu disco de estréia, lançado em 1962, fizeram sua carreira deslanchar de imediato. Abandonada pelo marido, viu-se obrigada a trabalhar como secretária para poder sustentar a filha e a música que escolhera.
"Nunca deixei de cantar, mas o que eu fazia na música era diferente. Quando surgia uma oportunidade, cantava uma ou duas noites por semana em algum clube. Preferi ganhar dinheiro datilografando a ser obrigada a cantar algum tipo de música na qual não acreditasse", afirma a intérprete, que só se dedicou em tempo integral à música a partir de 1987.
Sheila diz que ainda não sabe o que vai apresentar no Chivas Jazz. "Tenho um repertório grande. Provavelmente serão standards, baladas e alguns bebops", adianta, informando que várias dessas canções fazem parte de seus álbuns mais recentes, "Little Song" (2003) e "Jazz Child" (1999). Em ambos teve a companhia do excelente trio do pianista Steve Kuhn, que também virá com ela.
A excitação causada por sua estréia no Brasil animou Sheila a decidir cantar pela primeira vez em público uma canção brasileira. "Só não fiz isso antes porque não falo a língua de vocês e geralmente não gosto das versões para o inglês", justifica, contando que pretende cantar "Promise of You", de Ivan Lins, numa versão de David Linx, que finalmente a agradou. "A música brasileira é magnífica, vem da alma", elogia.
Quanto à situação atual do mercado musical, Sheila considera que o talento vem sendo substituído cada vez mais por estratégias de marketing. "Hoje tudo gira em torno dos jovens. Eles querem que, antes de qualquer coisa, você seja jovem e bonita. Cantar bem fica em segundo plano. Eu penso que, quanto mais você amadurece, cantando ou tocando jazz, melhor será a sua música."

Carlos Calado é autor de "O Jazz como Espetáculo", entre outros livros


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