São Paulo, quarta-feira, 14 de abril de 2004

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ANÁLISE

Guerra na favela transfigura telejornais

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

As favelas aparecem hoje como se estivessem no centro dos acontecimentos. Os tradicionais bairros populares ganharam uma hipervisibilidade perversa, que associa tráfico, violência e pobreza -com evidência documental.
No início dos anos 90, novelas pouco tratavam de casos escabrosos. Os telejornais, ainda na esteira dos anos de oficialismo forçado, se limitavam a coberturas institucionais.
Coube ao pioneiro "Aqui, Agora" dar visibilidade, na maioria dos casos, indiscreta e preconceituosa aos bairros populares. Reportagens ao vivo e "in loco" apresentavam casos policiais narrados dramaticamente.
O noticioso do SBT teve vida curta. O formato sobrevive na Bandeirantes e na Record, em versões centradas em figuras de apresentadores-personagens autoritários.
Mas quando a guerra civil irrompe no feriado santo, ela toma conta da pauta, fazendo os noticiários nacionais se assemelharem aos telejornais "realidade".
Uma noite de Sexta-Feira da Paixão brindada com imagens de projéteis bélicos que, tal como as guerras no Iraque, produzem imagens semelhantes a espetáculos de fogos de artifício.
A guerra entre traficantes e entre eles e a polícia atinge moradores com balas perdidas, expulsa outros, que, de mala e cuia, abandonam suas casas em busca de um exílio seguro.
Há ainda os que supostamente, antes de sair à rua, sondam as condições de segurança pirateando mensagens de rádio amador. Ouvimos as ameaças do tráfico aos repórteres.
Acompanhamos imagens de perseguições com policiais subindo o morro de tocaia, armados até os dentes. Vemos civis se abrigarem inutilmente dentro de frágeis barracas de madeira fina.
Diante de tanto realismo, as imagens de moradores que denunciam a situação aparecem sugestivamente embaçadas. No meio do excesso de luzes, o anonimato se torna questão de vida ou morte.
As telas de TV então surpreendentemente se aproximam da pintura abstrata. O efeito estético da tela borrada de um telejornal "realidade" é no mínimo perturbador.
É como se da hipervisibilidade passássemos a uma diluição tão discriminatória quanto a invisibilidade anterior. O desafio de representar a situação equivale ao desafio de enfrentar poderes paralelos que, apesar das aparências, não se originam na favela.


Esther Hamburger é antropóloga e professora da ECA-USP

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