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ANÁLISE
Guerra na favela transfigura telejornais
ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA
As favelas aparecem hoje
como se estivessem no centro dos acontecimentos. Os tradicionais bairros populares ganharam uma hipervisibilidade perversa, que associa tráfico, violência e pobreza -com evidência
documental.
No início dos anos 90, novelas
pouco tratavam de casos escabrosos. Os telejornais, ainda na esteira dos anos de oficialismo forçado, se limitavam a coberturas institucionais.
Coube ao pioneiro "Aqui, Agora" dar visibilidade, na maioria
dos casos, indiscreta e preconceituosa aos bairros populares. Reportagens ao vivo e "in loco"
apresentavam casos policiais narrados dramaticamente.
O noticioso do SBT teve vida
curta. O formato sobrevive na
Bandeirantes e na Record, em
versões centradas em figuras de
apresentadores-personagens autoritários.
Mas quando a guerra civil irrompe no feriado santo, ela toma
conta da pauta, fazendo os noticiários nacionais se assemelharem aos telejornais "realidade".
Uma noite de Sexta-Feira da
Paixão brindada com imagens de
projéteis bélicos que, tal como as
guerras no Iraque, produzem
imagens semelhantes a espetáculos de fogos de artifício.
A guerra entre traficantes e entre eles e a polícia atinge moradores com balas perdidas, expulsa
outros, que, de mala e cuia, abandonam suas casas em busca de
um exílio seguro.
Há ainda os que supostamente,
antes de sair à rua, sondam as
condições de segurança pirateando mensagens de rádio amador.
Ouvimos as ameaças do tráfico
aos repórteres.
Acompanhamos imagens de
perseguições com policiais subindo o morro de tocaia, armados até
os dentes. Vemos civis se abrigarem inutilmente dentro de frágeis
barracas de madeira fina.
Diante de tanto realismo, as
imagens de moradores que denunciam a situação aparecem sugestivamente embaçadas. No
meio do excesso de luzes, o anonimato se torna questão de vida ou
morte.
As telas de TV então surpreendentemente se aproximam da
pintura abstrata. O efeito estético
da tela borrada de um telejornal
"realidade" é no mínimo perturbador.
É como se da hipervisibilidade
passássemos a uma diluição tão
discriminatória quanto a invisibilidade anterior. O desafio de representar a situação equivale ao
desafio de enfrentar poderes paralelos que, apesar das aparências,
não se originam na favela.
Esther Hamburger é antropóloga e
professora da ECA-USP
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