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MARCELO COELHO
A farsa do passado
Pessoas que sofreram grandes traumas -que sobreviveram a acidentes de carro, que
presenciaram fuzilamentos, que
foram estupradas- costumam
sonhar repetidas vezes com o que
aconteceu. Diz Freud que esses sonhos são a tentativa de recuperar
o domínio sobre a catástrofe; vive-se a angústia "de novo", porque, no momento do trauma, isso
foi impossível, e tudo o que não
conseguimos absorver como experiência passada acaba teimando
em retornar.
Leio essa teoria no conhecido
estudo sobre Baudelaire escrito
por Walter Benjamin -mas é de
seu xará, Benjamim Zambraia,
que falo a seguir. Ele é o protagonista de "Benjamim", filme de
Monique Gardenberg baseado no
romance de Chico Buarque.
A primeira cena do filme é justamente um sonho traumático
desse tipo. O personagem volta à
juventude, na época do regime
militar. A tela está saturada de
um verde transamazônico, enquanto os títulos do filme aparecem em grená. O jovem Benjamim Zambraia (Danton Mello),
muito "tchép-tchuda" num ternozinho apertado e com os cabelos no mais legítimo corte jovem
guarda, caminha por uma estrada de terra na periferia; entra numa casa abandonada, homens de
metralhadora o cercam e...
Corte para os dias atuais; Benjamim Zambraia acorda do sonho. Ele é agora vivido por um
suave, diáfano Paulo José, que
transita como um fantasma por
um Rio de Janeiro predominantemente claro e frio, de restaurantes
brancos e manhãs vazias no calçadão.
Paro por aqui. Só existe uma
coisa mais chata do que ler a história de um filme no jornal: é ter
de contá-la. No caso de "Benjamim", daria bastante trabalho. O
enredo não é dos mais simples,
flashbacks não faltam, e, quando
o filme acaba, ainda temos de
"processar", como se diz, a informação recebida.
Reclamaram disso, aliás. Gostei
muito do filme, e acho que certa
dose de complicação na verdade o
favorece. Arrisco-me a dizer que
"Benjamim" irá melhorar com o
tempo, valendo a pena assisti-lo
mais de uma vez.
Numa coisa, a maior parte dos
críticos concordou: a estreante
Cléo Pires é uma revelação. A
atriz se mostra ao mesmo tempo
irônica e simples, recatada e biscateira, carnal e esquiva no duplo
papel de Ariela Masé e Castana
Beatriz. A primeira é uma corretora imobiliária de umbigo de fora, pura carioquice suburbana, às
voltas com o marido policial e
com o fascinado Paulo José. A outra é uma modelo fotográfica em
pleno governo Costa e Silva, filha
de um milionário repressor, que
vive com o mesmo Benjamim um
romance apaixonado. Tudo indica que Ariela Masé na realidade é
filha de Castana Beatriz; para
Benjamim, é como se estivesse
diante da mesma mulher, revivendo, digamos assim, o trauma
que os separou. Eu disse que a trama era complicada.
Cléo Pires é filmada muito de
perto, como se a câmera quisesse
apalpá-la: é que Benjamim não
sabe dizer se aquela moça, que
reaparece em seu caminho várias
vezes, tem alguma relação com o
seu passado ou se é apenas uma
aparição, uma armadilha criada
por sua memória. Quanto mais
real ela se apresenta no filme, menos certezas temos a seu respeito.
Fiquei desconfiado com o slogan promocional de "Benjamim",
um bocado romântico: "Ninguém
proíbe o amor". Para mim, trata-se de um filme político de ponta a
ponta. Os personagens vivem diversos traumas ao longo da história, sentimentais, físicos, morais.
Tudo parece entretanto ser a tradução, em situações pessoais concretas, de um único e mesmo
trauma, que foi a repressão durante o regime militar.
O abalo que 1964 impôs ao Brasil não está superado. Voltando a
Freud: o trauma precisa ser reencenado, assim como o caso de
amor entre Benjamim e Castana
Beatriz, porque não se pôde vivenciar plenamente -por meio
do luto, da reparação, da punição
ou da vingança- a angústia que
causou.
O pior, e o que torna a trama de
"Benjamim" mais interessante, é
que, de fato, o filme coloca em
ação uma vingança, um ato de
compensação pelos crimes do regime. Acontece que algozes e vítimas, no desconcertante final da
história, não trocaram absolutamente de lugar. O aparato repressivo continua funcionando. O poder patriarcal, antes representado
pelo pai milionário da mocinha,
hoje se torna mais sinistro. O sistema autoritário é substituído pela democracia -mas o comício
eleitoral e o candidato a deputado que aparece no filme (Chico
Diaz, no papel de Alyandro Sgaratti) não passam de uma farsa
assustadora.
Nenhuma justiça histórica se
faz, portanto; e talvez seja por isso
que o final do filme nos pareça
tão abrupto, tão difícil de engolir.
O teórico americano Fredric Jameson criticou a moda dos filmes
de nostalgia dos anos 80, considerando-os sintoma de uma dificuldade tipicamente pós-moderna: o
que se tenta, diz ele, "é pensar historicamente o presente numa
época que já esqueceu como pensar dessa maneira". Não se consegue situar o presente como resultado, como conseqüência do passado; tampouco a noção de futuro, de um vetor histórico a ser seguido, se coloca.
É possível que isso funcione para muitos filmes americanos. No
Brasil, de forma nem um pouco
"pós-moderna", o passado não se
cristalizou. Em "Benjamim", o
contraste entre passado e presente
-na fotografia, na fala dos personagens- não poderia ser
maior. Os anos 60 não são objeto
de evocação nostálgica, mas sim
reencenados como farsa. A tragédia estaria no fato de que, por
maiores que sejam as diferenças
entre aquela época e agora, pouca
coisa mudou de fato.
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