São Paulo, quarta-feira, 14 de abril de 2004

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MARCELO COELHO

A farsa do passado

Pessoas que sofreram grandes traumas -que sobreviveram a acidentes de carro, que presenciaram fuzilamentos, que foram estupradas- costumam sonhar repetidas vezes com o que aconteceu. Diz Freud que esses sonhos são a tentativa de recuperar o domínio sobre a catástrofe; vive-se a angústia "de novo", porque, no momento do trauma, isso foi impossível, e tudo o que não conseguimos absorver como experiência passada acaba teimando em retornar.
Leio essa teoria no conhecido estudo sobre Baudelaire escrito por Walter Benjamin -mas é de seu xará, Benjamim Zambraia, que falo a seguir. Ele é o protagonista de "Benjamim", filme de Monique Gardenberg baseado no romance de Chico Buarque.
A primeira cena do filme é justamente um sonho traumático desse tipo. O personagem volta à juventude, na época do regime militar. A tela está saturada de um verde transamazônico, enquanto os títulos do filme aparecem em grená. O jovem Benjamim Zambraia (Danton Mello), muito "tchép-tchuda" num ternozinho apertado e com os cabelos no mais legítimo corte jovem guarda, caminha por uma estrada de terra na periferia; entra numa casa abandonada, homens de metralhadora o cercam e...
Corte para os dias atuais; Benjamim Zambraia acorda do sonho. Ele é agora vivido por um suave, diáfano Paulo José, que transita como um fantasma por um Rio de Janeiro predominantemente claro e frio, de restaurantes brancos e manhãs vazias no calçadão.
Paro por aqui. Só existe uma coisa mais chata do que ler a história de um filme no jornal: é ter de contá-la. No caso de "Benjamim", daria bastante trabalho. O enredo não é dos mais simples, flashbacks não faltam, e, quando o filme acaba, ainda temos de "processar", como se diz, a informação recebida.
Reclamaram disso, aliás. Gostei muito do filme, e acho que certa dose de complicação na verdade o favorece. Arrisco-me a dizer que "Benjamim" irá melhorar com o tempo, valendo a pena assisti-lo mais de uma vez.
Numa coisa, a maior parte dos críticos concordou: a estreante Cléo Pires é uma revelação. A atriz se mostra ao mesmo tempo irônica e simples, recatada e biscateira, carnal e esquiva no duplo papel de Ariela Masé e Castana Beatriz. A primeira é uma corretora imobiliária de umbigo de fora, pura carioquice suburbana, às voltas com o marido policial e com o fascinado Paulo José. A outra é uma modelo fotográfica em pleno governo Costa e Silva, filha de um milionário repressor, que vive com o mesmo Benjamim um romance apaixonado. Tudo indica que Ariela Masé na realidade é filha de Castana Beatriz; para Benjamim, é como se estivesse diante da mesma mulher, revivendo, digamos assim, o trauma que os separou. Eu disse que a trama era complicada.
Cléo Pires é filmada muito de perto, como se a câmera quisesse apalpá-la: é que Benjamim não sabe dizer se aquela moça, que reaparece em seu caminho várias vezes, tem alguma relação com o seu passado ou se é apenas uma aparição, uma armadilha criada por sua memória. Quanto mais real ela se apresenta no filme, menos certezas temos a seu respeito.
Fiquei desconfiado com o slogan promocional de "Benjamim", um bocado romântico: "Ninguém proíbe o amor". Para mim, trata-se de um filme político de ponta a ponta. Os personagens vivem diversos traumas ao longo da história, sentimentais, físicos, morais. Tudo parece entretanto ser a tradução, em situações pessoais concretas, de um único e mesmo trauma, que foi a repressão durante o regime militar.
O abalo que 1964 impôs ao Brasil não está superado. Voltando a Freud: o trauma precisa ser reencenado, assim como o caso de amor entre Benjamim e Castana Beatriz, porque não se pôde vivenciar plenamente -por meio do luto, da reparação, da punição ou da vingança- a angústia que causou.
O pior, e o que torna a trama de "Benjamim" mais interessante, é que, de fato, o filme coloca em ação uma vingança, um ato de compensação pelos crimes do regime. Acontece que algozes e vítimas, no desconcertante final da história, não trocaram absolutamente de lugar. O aparato repressivo continua funcionando. O poder patriarcal, antes representado pelo pai milionário da mocinha, hoje se torna mais sinistro. O sistema autoritário é substituído pela democracia -mas o comício eleitoral e o candidato a deputado que aparece no filme (Chico Diaz, no papel de Alyandro Sgaratti) não passam de uma farsa assustadora.
Nenhuma justiça histórica se faz, portanto; e talvez seja por isso que o final do filme nos pareça tão abrupto, tão difícil de engolir.
O teórico americano Fredric Jameson criticou a moda dos filmes de nostalgia dos anos 80, considerando-os sintoma de uma dificuldade tipicamente pós-moderna: o que se tenta, diz ele, "é pensar historicamente o presente numa época que já esqueceu como pensar dessa maneira". Não se consegue situar o presente como resultado, como conseqüência do passado; tampouco a noção de futuro, de um vetor histórico a ser seguido, se coloca.
É possível que isso funcione para muitos filmes americanos. No Brasil, de forma nem um pouco "pós-moderna", o passado não se cristalizou. Em "Benjamim", o contraste entre passado e presente -na fotografia, na fala dos personagens- não poderia ser maior. Os anos 60 não são objeto de evocação nostálgica, mas sim reencenados como farsa. A tragédia estaria no fato de que, por maiores que sejam as diferenças entre aquela época e agora, pouca coisa mudou de fato.


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