São Paulo, sexta-feira, 14 de abril de 2006

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ANÁLISE

Jonas: homem de um tempo

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Jonas , o protagonista de "Árido Movie", é homem do tempo, expressão carregada de possibilidades: homem do tempo pode ser, por exemplo, Deus; um meteorologista (caso do próprio); um filósofo; um guru.
Certamente, no filme, Jonas é homem de UM tempo, o de São Paulo -tempo de utilidades e certezas.
E é no Nordeste -no sertão árido onde morreu seu pai, pertencente a uma família de coronéis em que ainda prevalece a "vendetta"- que ele conhece um outro tempo. Ou melhor, vários.
O tempo do sol, da seca; o tempo que não passa, também do sol, mas igualmente da "vendetta"; o tempo dos índios, ameaçados de extinção literal e representados de forma agressivamente comovedora por José Dumont, o Zé Elétrico, que, num momento do filme, diz que vai sair para meditar, já que "o mundo tá transitando na contramão".

O sol de João Cabral
Dentro de um táxi, no Recife, Jonas, o homem do tempo, sussurra para um motorista que não o entende, praguejando contra o sol mormacento: "Sol de dois canos". É o sol de João Cabral de Melo Neto: "O sol em Pernambuco leva dois sóis/ sol de dois canos, de tiro repetido;/ o primeiro dos dois, o fuzil de fogo/ incendeia a terra: tiro de inimigo./ O sol em Pernambuco leva dois sóis,/ sol de dois canos, de tiro repetido;/ o segundo dos dois, o fuzil de luz,/ revela real a terra: tiro de inimigo".
E Jonas e o espectador deveriam então aprender que o sol, no Nordeste (pelo menos no sertão), é sempre inimigo. Mas não aprendemos, não.
Eu, pelo menos, me senti idêntica à personagem interpretada por Giulia Gam, Soledad, videomaker pseudo-intelectual que se deixa fascinar ingenuamente pelo discurso aforístico-sabido de Meu Velho, personagem interpretada por Zé Celso, líder religioso no estilo "Coração das Trevas", que diz frases como "isso aqui é e não é, mas está sendo".
Imagino que, se estivesse no lugar dela, cairia direitinho nas palavras dele e também o acharia lindo, sem fazer idéia de que ele faz parte da trama exploratória de água dos coronéis da região.
Mas, como ajuizadamente diz o nome do posto de gasolina de Zé Elétrico, Oposto, não tenho certeza se a ingenuidade é mesmo o pior desta história.
Talvez aqueles jagunços absurdos sejam tudo menos ingênuos, mas não sei se são o oposto disso. E muitas vezes acho melhor a credulidade do possível ao pragmatismo do factível.


Noemi Jaffe é escritora e professora de literatura, autora de "Folha Explica Macunaíma" (Publifolha) e "Todas as Coisas Pequenas" (Hedra)


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