São Paulo, sexta-feira, 14 de maio de 2004

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Time de roteiristas comete "crimes" homéricos

HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE EDITORIALISTAS

O filme até que é gostoso de assistir, e as formas de Helena (Diane Kruger) justificam, se não uma guerra, ao menos uma ida ao cinema para conferir "Tróia". Isto posto, as justiças histórica e poética exigem que se diga que o filme, embora dê créditos a Homero, tem pouco a ver com a obra do poeta grego autor da "Ilíada".
Ninguém poderia esperar que Hollywood seguisse à risca os hexâmetros homéricos. A rigor, nem o próprio Homero foi muito fiel à tradição oral da qual o seu poema é tributário. Foram os acréscimos e as elaborações ajuntados por várias gerações de aedos -dos quais Homero é o maior representante- que transformaram uma historinha corriqueira (a infidelidade de uma mulher seguida de um ajuste de contas entre os homens envolvidos) na monumental obra de quase 16 mil versos que inaugurou a literatura do Ocidente e se tornou a espinha dorsal da tradição clássica européia.
Essas considerações não bastam para legitimar alguns dos crimes homéricos que os roteiristas cometeram contra Homero. O que mais salta à vista é a ausência dos deuses. Na "Ilíada" e em menor grau na "Odisséia", os deuses são personagens centrais, interferindo na trama e chegando a travar combate ao lado dos heróis.
Não sei se foi ou não uma concessão ao lobby religioso dos EUA, o fato é que o panteão olímpico não apenas deixa de atuar no filme como ainda se nota um certo desdém para com a religião grega. A única imortal que faz uma ponta é a ninfa Tétis, mãe de Aquiles, retratada de forma ambígüa, podendo passar por uma velha meio amalucada. "Mutatis mutandis", eliminar os deuses é como contar a história da Bela Adormecida sem bruxa e fadas.
O corte de personagens importantes força os roteiristas a manobras arriscadas. Exemplo: Páris, o príncipe troiano que roubou Helena de Menelau, dando início à guerra, trava um duelo com o marido ultrajado. Em Homero, Páris é salvo pela deusa Afrodite. Em "Tróia", ele se acovarda, sendo resgatado pelo irmão Heitor. Convenhamos que um Páris covarde não convence.
O que também não convence na indústria cinematográfica é uma fita sem vilões. Assim, Agamêmnon, o chefe dos gregos, retratado na "Ilíada" como herói valente, virou um canalha, responsável por quase tudo de ruim que acontece.
Outras "soluções" adotadas devem ter feito Homero sentir calafrios mesmo no Hades, o mundo dos mortos. No filme, Agamêmnon, como todo bom bandido, morre no final. Na mitologia, porém, ele volta para Micenas, para ser assassinado por sua mulher, Clitemnestra. Com essa morte, Hollywood privou o mundo de algumas das mais belas tragédias gregas já escritas, que contam os dramas de Agamêmnon e sua descendência. É claro que são detalhes. Um crime maior pode ser cometido se a Academia der a Homero o Oscar de melhor roteiro original.


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