São Paulo, sexta-feira, 14 de maio de 2004

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MÚSICA

Em "Trampin'", cantora volta a gravar após um hiato de quatro anos

Em novo disco, Patti Smith contraria "cultura racional"

SVETI SLAVIK
DA INTERNATIONAL FEATURE AGENCY'

Alguns dias antes de um show de Patti Smith em Londres, uma cópia de seu novo álbum, "Trampin", é alvo da curiosidade voraz deste jornalista que vos fala. O ouvinte é enriquecido com um disco excelente composto de dez originais e um cover (a faixa-título é um standard popularizado pela contralto americana Marian Anderson), mas duas canções se erguem muito acima de tudo, como as pernas do Colosso de Rodes em relação às construções comuns.
"Ghandi" é um poema tonal que conduz o ouvinte numa viagem total até extremos líricos e sônicos. "Radio Baghdad" é uma condenação implacável do "débâcle" no Iraque.
Durante sua carreira de poeta que virou a "madrinha do punk", Smith já explorou diversos gêneros musicais, e seus shows abrangem todos eles, desde uma leitura de poemas até uma melodia em estilo gospel, desde faixas minimalistas até outras de som capaz de silenciar o rock mais brando de grupos como Nickelback.
Patti Smith começou como jornalista, passou a fazer poesia, voltou-se ao rock e virou a voz fundadora do cenário punk rock de Nova York no início dos anos 70. Durante a segunda metade dessa década, ela lançou quatro álbuns, até mergulhar na felicidade doméstica com Fred "Sonic" Smith, ex-guitarrista do legendário MC5.
Após a morte de seu marido, em 1990, vimos uma explosão renovada de Patti na segunda metade da década. Seu álbum anterior foi "Gung Ho", de 2000, o último que lançou pela Arista, selo com o qual trabalhou por muito tempo. "Não quiseram renovar meu contrato", ela revela, pragmática. "Tive que seguir adiante."
Patti Smith realmente lembra uma versão feminina de Keith Richards, e sua reputação é semelhante à dele -a de alguém que não tolera bobagens. Só que, sendo mulher, é mais fácil perdoá-la. Cada resposta sua se transforma num monólogo que a conduz para muito longe do tópico original. Ela raramente perde o fio condutor de seu pensamento, mas, quando isso acontece com tanta paixão quanto agora, é compreensível.
"Temos muitas questões que nos preocupam, relacionadas à nossa vida, ao mundo. Eu realmente me senti rejuvenescida antes de "Trampin". Acho que ele contém muita energia nova, muita raiva, muito sentimento instigante e até mesmo uma melancolia nova. É uma música forte e honesta, e tenho muito orgulho do que fizemos neste álbum."
Que o álbum é apaixonado, disso não há dúvida, e isso vai contra a tendência mais ampla de nossa época, não é mesmo? Contra a visão racionalizada da vida, dos acontecimentos e de tudo?
"Há duas coisas que nunca devemos deixar acontecer: primeiro, não devemos racionalizar nossos sentimentos. Segundo, não devemos nos deixar entorpecer. Não podemos nos deixar saturar, assistindo a imagens do Iraque que acabam se parecendo com um programa de TV: essas são pessoas reais, são crianças de verdade que estão sendo mortas, suas vidas estão sendo destruídas, seu ambiente, sendo devastado. São os fatos reais, as pessoas reais, a tragédia real de nosso tempo."
A verdade é que o tema do novo álbum não fará seus conterrâneos gostarem mais dela. No entanto, Patti Smith nunca tentou ser qualquer coisa senão verdadeira com relação a ela mesma, a sua poesia e sua expressão artística.
"Os artistas sempre foram perseguidos", diz ela com um sorriso triste, dando de ombros. ""Não é novidade. Isso é algo que acontece há muito tempo. Lembro-me de de uma época em que você era castigado pelo governo, as rádios ou a mídia, e isso era visto como emblema de honra. A gente adorava -significava que estávamos fazendo alguma coisa que incomodava o establishment."
Em outro momento, a cantora volta a citar essa época: "Fala-se muito que os artistas dos anos 1960 e 1970 não conseguiram fazer as pessoas carregar alguma coisa desse período com elas. Mas é preciso olhar para as pessoas que têm ambições políticas. Sua carreira é importante, e para ser eleito é preciso reduzir seus padrões para o mais baixo dos denominadores comuns. Essas pessoas estão mais preocupadas com o que ocorre no processo político do que com o efeito que isso tem sobre os países e as pessoas".


Tradução Clara Allain


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