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RODAPÉ
A "Invenção de Orfeu" e as cinzas
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
Em "O Desafio" (1964), filme
de Paulo César Sarraceni, um
jornalista e a mulher de um rico
industrial tentam reatar um caso
de amor e idealismo em meio à
opressão e ao desalento que se seguiram ao golpe militar. A certa
altura do enredo, há uma seqüência em que Marcelo (vivido por
Oduvaldo Vianna Filho) convida
Ada, relutante em deixar família e
filho pequeno, a um passeio em
meio às ruínas de uma pensão
que, parte das memórias comuns,
sucumbira num incêndio. Nos escombros, os amantes encontram
uma página chamuscada. Em voz
alta, os dois lêem -primeiro balbuciantes, depois resolutos- um
poema e concluem, iluminados:
Jorge de Lima!
O episódio é revelador da popularidade de que ainda desfrutava a
poesia plural do poeta alagoano,
dez anos depois de sua morte. Defensores apaixonados -como
Mário Faustino, àquela altura, no
auge da atividade- faziam contraponto ao nariz torcido que a
maré montante do concretismo
lhe reservava. A poesia maldita
paulista, Roberto Piva à testa, o
venerava e incorporava. Mas, desde então, sua obra foi aos poucos
mergulhando em temporária hibernação.
Nos anos 70, durante a hegemonia da informalidade (em ambos
os sentidos) da poesia marginal,
caia mal o gosto de Lima pelas
formas fixas, em múltiplas configurações. Não se assimilava mais
sua dicção final, peculiaríssima,
de imagens tão poderosas, quanto
insólitas e enigmáticas, e inflexão
algo sublime, já evidente no "Livro de Sonetos" (1949) e burilada
ao extremo na longa e genial "Invenção de Orfeu" (1952).
É este testamento e súmula de
um variado percurso poético, épico-lírico em dez cantos, que a Record acaba de relançar, dando
continuidade ao projeto de edição
em volumes separados da poesia
do poeta alagoano, como já vinha
fazendo com a obra de Murilo
Mendes. Sinal de um ressurgimento que se junta ao da reedição
recente, pela Civilização Brasileira, de quase todos os seus romances, que variam do quase surreal
"O Anjo" (1934), passando pelo
realismo regionalista de "Calunga" (1935), por "A Mulher Obscura" (1939), até a angústia existencial-religiosa de "Guerra Dentro
do Beco" (1950).
A exemplo de Mendes, Jorge de
Lima militou no modernismo,
mas não se deixou incorporar pelo núcleo forte que ficou associado à Semana de 22 (tampouco se
encaixa sem sobras no grupo que
cerrou fileiras em torno de Gilberto Freyre).
Sua fase do "todos cantam sua
terra", marcada pelos amplos panoramas whitmanianos, pelo verso livre paratático e pela disposição enumerativa (veja-se o passeio de trem do poema
"G.W.B.R.", puro Brasil no ritmo
dos sacolejos), corresponde a
"Poemas" (1927), já relançado em
2004, aos "Novos Poemas" (1929)
e aos "Poemas Negros", títulos
anunciados para breve. Neles,
identificamos uma convicção
modernista plena, característica
do recém-convertido, temperada
por um visualismo de cunho próprio, preciso e simples, impregnado do imaginário e da paisagem
nordestinas.
A "Invenção de Orfeu", por sua
vez, recoloca em circulação outro
Jorge de Lima, mais ambicioso (e,
portanto, mais rico em picos e vales), mais resistente à assimilação,
que costuma provocar reações extremas: ódio ou amor. É um sucesso entre os poetas, porque poema sobre a criação contemporânea e seus percalços, às turras
com uma construção imagética
ousada e inovadora, a possibilidade do poema longo nos dias de
hoje, a relação entre mito, tradição épica clássica e poesia moderna, além de ser uma recapitulação
condensada da história da expressão poética brasileira.
Campo de experimentação de
formas e materiais poéticos, a
"biografia épica" de Jorge de Lima
está coalhada de pedras de toque,
sementeira inesgotável de poesia
genuína que se vale da recorrência das formas breves (sonetos incrustados, por exemplo) e das
imagens herméticas para sustentar sua delicada e instável unidade. Não é pouco como programa
estético, necessariamente fadado
ao fracasso, mas a um fracasso heróico, à altura do órfico estampado no título, sempre ressurgindo
das cinzas.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço
Invenção de Orfeu
Autor: Jorge de Lima
Editora: Record
Quanto: R$ 49,90 (432 págs.)
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