São Paulo, sábado, 14 de maio de 2005

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RODAPÉ

A "Invenção de Orfeu" e as cinzas

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

Em "O Desafio" (1964), filme de Paulo César Sarraceni, um jornalista e a mulher de um rico industrial tentam reatar um caso de amor e idealismo em meio à opressão e ao desalento que se seguiram ao golpe militar. A certa altura do enredo, há uma seqüência em que Marcelo (vivido por Oduvaldo Vianna Filho) convida Ada, relutante em deixar família e filho pequeno, a um passeio em meio às ruínas de uma pensão que, parte das memórias comuns, sucumbira num incêndio. Nos escombros, os amantes encontram uma página chamuscada. Em voz alta, os dois lêem -primeiro balbuciantes, depois resolutos- um poema e concluem, iluminados: Jorge de Lima!
O episódio é revelador da popularidade de que ainda desfrutava a poesia plural do poeta alagoano, dez anos depois de sua morte. Defensores apaixonados -como Mário Faustino, àquela altura, no auge da atividade- faziam contraponto ao nariz torcido que a maré montante do concretismo lhe reservava. A poesia maldita paulista, Roberto Piva à testa, o venerava e incorporava. Mas, desde então, sua obra foi aos poucos mergulhando em temporária hibernação.
Nos anos 70, durante a hegemonia da informalidade (em ambos os sentidos) da poesia marginal, caia mal o gosto de Lima pelas formas fixas, em múltiplas configurações. Não se assimilava mais sua dicção final, peculiaríssima, de imagens tão poderosas, quanto insólitas e enigmáticas, e inflexão algo sublime, já evidente no "Livro de Sonetos" (1949) e burilada ao extremo na longa e genial "Invenção de Orfeu" (1952).
É este testamento e súmula de um variado percurso poético, épico-lírico em dez cantos, que a Record acaba de relançar, dando continuidade ao projeto de edição em volumes separados da poesia do poeta alagoano, como já vinha fazendo com a obra de Murilo Mendes. Sinal de um ressurgimento que se junta ao da reedição recente, pela Civilização Brasileira, de quase todos os seus romances, que variam do quase surreal "O Anjo" (1934), passando pelo realismo regionalista de "Calunga" (1935), por "A Mulher Obscura" (1939), até a angústia existencial-religiosa de "Guerra Dentro do Beco" (1950).
A exemplo de Mendes, Jorge de Lima militou no modernismo, mas não se deixou incorporar pelo núcleo forte que ficou associado à Semana de 22 (tampouco se encaixa sem sobras no grupo que cerrou fileiras em torno de Gilberto Freyre).
Sua fase do "todos cantam sua terra", marcada pelos amplos panoramas whitmanianos, pelo verso livre paratático e pela disposição enumerativa (veja-se o passeio de trem do poema "G.W.B.R.", puro Brasil no ritmo dos sacolejos), corresponde a "Poemas" (1927), já relançado em 2004, aos "Novos Poemas" (1929) e aos "Poemas Negros", títulos anunciados para breve. Neles, identificamos uma convicção modernista plena, característica do recém-convertido, temperada por um visualismo de cunho próprio, preciso e simples, impregnado do imaginário e da paisagem nordestinas.
A "Invenção de Orfeu", por sua vez, recoloca em circulação outro Jorge de Lima, mais ambicioso (e, portanto, mais rico em picos e vales), mais resistente à assimilação, que costuma provocar reações extremas: ódio ou amor. É um sucesso entre os poetas, porque poema sobre a criação contemporânea e seus percalços, às turras com uma construção imagética ousada e inovadora, a possibilidade do poema longo nos dias de hoje, a relação entre mito, tradição épica clássica e poesia moderna, além de ser uma recapitulação condensada da história da expressão poética brasileira.
Campo de experimentação de formas e materiais poéticos, a "biografia épica" de Jorge de Lima está coalhada de pedras de toque, sementeira inesgotável de poesia genuína que se vale da recorrência das formas breves (sonetos incrustados, por exemplo) e das imagens herméticas para sustentar sua delicada e instável unidade. Não é pouco como programa estético, necessariamente fadado ao fracasso, mas a um fracasso heróico, à altura do órfico estampado no título, sempre ressurgindo das cinzas.


Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço

Invenção de Orfeu
    

Autor: Jorge de Lima
Editora: Record
Quanto: R$ 49,90 (432 págs.)


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