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58º FESTIVAL DE CANNES
"Last Days" forma trilogia com os anteriores "Gerry" e "Elefante'; em entrevista diretor diz que seu filme "é um exercício poético"
Gus van Sant sobe ao panteão do cinema
ALCINO LEITE NETO
ENVIADO ESPECIAL A CANNES
O diretor Gus van Sant abriu, finalmente, as portas do cinema e
da poesia para o Festival de Cannes, com seu maravilhoso "Last
Days", até agora o principal filme
da mostra competitiva.
Ufa, já não era sem tempo. Para
chegar até aqui, a crítica teve de
enfrentar, nos três primeiros dias,
o claudicante "Lemming", de Dominik Noll, o panfletário "Kilomètre Zero", de Hiner Saleem, e o
desastroso "Where the True
Lies", de Egoyan (leia abaixo).
"Last Days" é um filme experimental, muito triste e estranhamente glamouroso. Com "Gerry"
(2002) e "Elefante" (2003), forma
uma trilogia que coloca Van Sant
em definitivo ao lado dos mais
importantes inventores do cinema contemporâneo. Ao mesmo
tempo, cria enorme dificuldade
para enquadrá-lo na produção
americana atual.
Nos três filmes, reverberam temas, indagações e problemas comuns, desenvolvidos por uma
elaboração formal cada vez mais
complexa, em que a narrativa é
esvaziada, os diálogos perdem
importância, o movimento se entrega à errância, a imagem se abre
ao aleatório e à contemplação e a
banda sonora é objeto de uma
pesquisa nova e radical, a partir
da música concreta e incidental.
"Meu filme é um exercício poético. Não quis criar momentos de
cinema, mas momentos quaisquer", disse ontem em Cannes o
diretor, em entrevista à imprensa
ao lado de parte do elenco.
Isso quer dizer que Van Sant está pouco se lixando se deve contar
uma história com início, meio e
fim. Nem está se importando se
terá a maior bilheteria do mês ou
se o público ficará satisfeito com o
seu longa, rodado em apenas quatro semanas, num único cenário,
com pequeno orçamento e um
bando de novos atores, entre eles
Michael Pitt (o americano de "Os
Sonhadores", de Bertolucci).
Pitt faz o músico Blake, inspirado em Kurt Cobain, o líder do
grupo Nirvana, que se suicidou
em 1994. No filme, Blake e alguns
amigos se refugiam num casarão
antigo e decadente, talvez para escapar ao assédio dos produtores,
da mídia e dos fãs.
Mergulhado num delírio contínuo de drogas ou de loucura ou
de êxtase (ou dos três juntos), Blake anda a esmo pela casa e seus arredores, dorme num bosque, cozinha um miojo, toca violão, enquanto resmunga palavras sem
sentido e pouco compreensíveis.
Seu corpo encurvado mal pára
em pé, suas mãos tremem, enquanto os olhos miram fixamente
as coisas, a paisagem e o céu escuro, como se estivesse abismado
pela indiferença e o silêncio do espaço infinito. "Os personagens de
"Last Days" são como fantasmas,
que dão voltas para lá e para cá
enquanto os eventos acontecem",
afirmou o cineasta. "Por ter passado à condição de mito, Blake já
está um pouco morto antes de
morrer fisicamente."
Toda a trilogia de Van Sant parte dessa confrontação com a morte. Estranhamente, nesta época
em que a juventude virou modelo
social para todas as idades, os personagens de Van Sant são adolescentes sensuais que de repente
caem em prostração existencial e
enfrentam o sem-sentido do
mundo -seja em "Gerry", mais
metafísico, sobre dois amigos
perdidos num deserto, seja em
"Elefante", mais social, sobre um
assassinato coletivo, seja aqui em
"Last Days".
A morte, a alienação, a angústia
metafísica são, com certeza, temas muito abstratos para o cinema. Mas Van Sant consegue enfrentá-los como poucos, graças à
força de sua poética cinematográfica, que concretiza a idéia mais
complexa e o sentimento mais
forte a partir da observação simples e intensa do mundo, dos corpos e das coisas.
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