São Paulo, quinta-feira, 14 de maio de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NINA HORTA

As misturas casadas no céu


A mãe era criativa, sem jamais ter ouvido falar no Adrià. Ele, sim, adoraria sua criatividade

ESTOU ESCREVENDO no Dia das Mães e, por mais que implique com essas datas, começo a lembrar de dona Dulce.
É preciso lembrar gastronomicamente, e ela ensinava o Exército de Brancaleone a cozinhar direitinho, mas poucas vezes me lembro dela em cima de um panelão, com colher de pau. Nunca. Ou então era prática e jeitosa.
Quando se casou, tinha o emprego das mulheres da época que se metiam a trabalhar. Professora. Queria ser farmacêutica, não imagino o porquê, mas se deu otimamente ensinando crianças com síndrome de Down e doenças mentais. E mais tarde os saudáveis netos e amigos dos netos que enfiava no colégio Santa Cruz na amarra.
Nasceu sabendo alfabetizar, mas cozinhar, não. Graças a Deus se atracou num Rosamaria de dois volumes, sua Bíblia, e escapou totalmente da Dona Benta. Parece que o Rosamaria foi escrito, nunca descobri (também não procurei muito), por uma Leonardos, no Rio de Janeiro, que deu ao livro o formato de cartas para uma filha e atribuía seus conhecimentos a um francês que deixara com ela seus diários de cozinha.
A mãe era criativa, sem jamais ter ouvido falar no Adrià. Ele, sim, adoraria sua criatividade e suas químicas de virados e misturas casadas no céu. Chegou a brincar com soja, quando ainda tinha um gosto esquisito (que ela tirava) e misturava o grão cozido, mas sem caldo, a uma farofa com grandes nacos de linguiça. Meu pai adorava tudo do mar, ela não, a não ser bacalhau. Mas, em honra a ele, fazia de lagosta a lambreta, piaba e camarãozinho sete-barbas frito na casca, empadinhas de camarão e camarão com chuchu e o que mais aparecesse. Engraçado é que adorava pescar.
As galinhas tinham pavor dela.
Não era de grandes carnes (um bom rosbife), não entrava em etnias estranhas, não fazia comida do Paquistão nem da Tailândia, mas no fim da vida adotou um frango ao curry com castanhas portuguesas, sem pimenta, que aprendeu a adorar. Ou era só de ruindade, para matar o frango, o que fazia em segundos sem que nem mesmo o pobre percebesse que mudara de estado. E, como gostava muito, fazia bem, à moda mineira, de vez em quando com quiabos e angu muito brilhante. Me ensinou a cortar a couve como convém, e tenho um preconceito horrível por quem não sabe.
Acho que quem sabe cozinhar com um livro só é porque já nasceu com fortes intuições. Não aprendeu comendo, era magra como um palito e muito alta. Mas tinha fome, comia certo na hora certa, um pouquinho de cada coisa, que dava um bom prato. Sobremesa não fazia parte do seu repertório, só uma torta de banana frita, com creme pâtissier no meio do pirex, as bananas em volta e clara batida sobre as bananas. Branco à volta, amarelo no meio, ia ao forno, a clara logo endurecia num marronzinho claro, dourado, sobre a banana. A caseira de Paraty faz essa torta muito mal e diz que aprendeu com ela. Cruzes. Sempre imagino minha mãe rolando no túmulo ao escutar essa conversa. E para festas, o doce de figo recheado com nozes, mas fazia de obrigação, para agradar ao sogro ou a um amigo querido.
As comidas também tinham dia certo, dia da feira, dia de ir ao Santa Luzia, berinjelas recheadas na quinta e coxinhas de galinha para dias meio sem assunto, pés-de-moleque e cajuzinhos de amendoim, e nas horas de aperto um macarrão com ovos e croûtons, ah, e a coalhada branca, rachando. E, se resolvia, inventava um macarrão feito em casa, mais grosso, e com um gosto de macarrão mesmo. Será que comida de mãe é melhor mesmo ou fantasia?
Torço pela primeira opção. Bom, mãe, escapei da crônica no dia certo, que é o pesadelo dos cronistas, mas te agradeço a comidinha boa lá de casa, sem frescura.

ninahorta@uol.com.br


Texto Anterior: Tentações
Próximo Texto: Comida: O melhor da esfiha
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.