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Obra questiona os limites entre necessidade e perversão
da Reportagem Local
Imagine que você está há vários
dias sem comer, a temperatura
abaixo de zero, e lhe oferecem um
suculento ensopado. Mas, e se, entre as batatas macias, a cebola e o
caldo quentinho, houvesse também pedaços de um colega seu,
cuidadosamente preparados, você
comeria? Reserve essas sensações
de necessidade, desespero e nojo.
Entre 1846 e 1847, ocorreu o que
ficou conhecido como o desastre
de Donner Pass: alguns imigrantes
ficaram isolados pela neve a caminho da Califórnia, e, quando as
provisões acabaram, comeram os
corpos de seus companheiros que
não resistiram e morreram.
O fato despertou a curiosidade
do roteirista Ted Griffin, que encontrou em alguns mitos indígenas a sanção para o canibalismo
como uma forma de se apoderar
da força e coragem dos inimigos.
De posse dela, dedicou-se à história do pobre capitão John Boyd
(Guy Pearce, de "Los Angeles - Cidade Proibida"), único sobrevivente de uma batalha sangrenta na
fronteira com o México porque
fingiu-se de morto. Sua pena: servir no posto militar de Sierra Nevada, na Califórnia, passagem dos
desbravadores do oeste.
Lá, no ano de 1847, Boyd tem de
conviver com uma trupe de excêntricos. O comandante que lê latim,
o médico alcoólatra, o cozinheiro
(David Arquette, de "Pânico")
adepto da mescalina, um soldado
(Jeremy Davies, de "O Resgate do
Soldado Ryan") que se considera
emissário de Deus e dois índios.
Junta-se ao grupo escocês Colqhoun (Robert Carlyle, de "Ou Tudo ou Nada") com uma história do
arco da velha: ele fazia parte de
uma expedição que a nevasca
prendeu numa caverna por meses.
Sobreviveu graças ao canibalismo,
mas fugiu quando uma mulher ia
ser sacrificada pelo líder do grupo.
E lá se vão todos para salvá-la,
sob os protestos dos índios, que reconhecem no forasteiro o Weendigo, a maldição do homem que se
alimenta de homem para se fortalecer, mas só traz destruição. O trajeto que o grupo percorre a caminho da verdade é tortuoso, cruel e
assustador. Até aqui, mérito do roteiro. Mas Griffin passa o bastão
para a diretora Antonia Bird se deliciar com as várias camadas de
sentido que sua história revela.
Ela tinge a tela de cores quentes,
imprime um realismo exacerbado
às sequências de batalha e luta
-reforçado pela trilha sonora instigante de Michael Nyman-, intimida os personagens e os condena
a decifrar o que se passa pelas frestas de portas e janelas, a maldição à
solta. Um filme de horror, sem dúvida, mas "diferente".
Porque a maldição não é um extraterrestre, uma entidade das
profundezas da terra, ou um
monstro cibernético que superou
seu próprio criador. A maldição é
o próprio homem, dominado pelo
lado sombrio de sua natureza. E
que, no limite, não hesita em destruir o outro para se preservar,
guiado pela necessidade.
É essa perversão que pode levar
ao desespero, como prova o pobre
Boyd. É nessa fronteira simbólica
entre a necessidade e a perversão
de "Mortos de Fome" que Antonia
Bird constrói o horror. Ela apostou
alto no talento e compromisso de
seus atores para transmitir as sensações de necessidade, desespero e
nojo essenciais à sua proposta. Ganhou na loteria.
(FG)
Avaliação:
Filme: Mortos de Fome
Produção: EUA, 1999
Direção: Antonia Bird
Com: Guy Pearce, Robert Carlyle
Quando: a partir de hoje no Cinearte 1,
Morumbi 6 e circuito
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