São Paulo, Sexta-feira, 14 de Maio de 1999
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Obra questiona os limites entre necessidade e perversão

da Reportagem Local

Imagine que você está há vários dias sem comer, a temperatura abaixo de zero, e lhe oferecem um suculento ensopado. Mas, e se, entre as batatas macias, a cebola e o caldo quentinho, houvesse também pedaços de um colega seu, cuidadosamente preparados, você comeria? Reserve essas sensações de necessidade, desespero e nojo.
Entre 1846 e 1847, ocorreu o que ficou conhecido como o desastre de Donner Pass: alguns imigrantes ficaram isolados pela neve a caminho da Califórnia, e, quando as provisões acabaram, comeram os corpos de seus companheiros que não resistiram e morreram.
O fato despertou a curiosidade do roteirista Ted Griffin, que encontrou em alguns mitos indígenas a sanção para o canibalismo como uma forma de se apoderar da força e coragem dos inimigos.
De posse dela, dedicou-se à história do pobre capitão John Boyd (Guy Pearce, de "Los Angeles - Cidade Proibida"), único sobrevivente de uma batalha sangrenta na fronteira com o México porque fingiu-se de morto. Sua pena: servir no posto militar de Sierra Nevada, na Califórnia, passagem dos desbravadores do oeste.
Lá, no ano de 1847, Boyd tem de conviver com uma trupe de excêntricos. O comandante que lê latim, o médico alcoólatra, o cozinheiro (David Arquette, de "Pânico") adepto da mescalina, um soldado (Jeremy Davies, de "O Resgate do Soldado Ryan") que se considera emissário de Deus e dois índios.
Junta-se ao grupo escocês Colqhoun (Robert Carlyle, de "Ou Tudo ou Nada") com uma história do arco da velha: ele fazia parte de uma expedição que a nevasca prendeu numa caverna por meses. Sobreviveu graças ao canibalismo, mas fugiu quando uma mulher ia ser sacrificada pelo líder do grupo.
E lá se vão todos para salvá-la, sob os protestos dos índios, que reconhecem no forasteiro o Weendigo, a maldição do homem que se alimenta de homem para se fortalecer, mas só traz destruição. O trajeto que o grupo percorre a caminho da verdade é tortuoso, cruel e assustador. Até aqui, mérito do roteiro. Mas Griffin passa o bastão para a diretora Antonia Bird se deliciar com as várias camadas de sentido que sua história revela.
Ela tinge a tela de cores quentes, imprime um realismo exacerbado às sequências de batalha e luta -reforçado pela trilha sonora instigante de Michael Nyman-, intimida os personagens e os condena a decifrar o que se passa pelas frestas de portas e janelas, a maldição à solta. Um filme de horror, sem dúvida, mas "diferente".
Porque a maldição não é um extraterrestre, uma entidade das profundezas da terra, ou um monstro cibernético que superou seu próprio criador. A maldição é o próprio homem, dominado pelo lado sombrio de sua natureza. E que, no limite, não hesita em destruir o outro para se preservar, guiado pela necessidade.
É essa perversão que pode levar ao desespero, como prova o pobre Boyd. É nessa fronteira simbólica entre a necessidade e a perversão de "Mortos de Fome" que Antonia Bird constrói o horror. Ela apostou alto no talento e compromisso de seus atores para transmitir as sensações de necessidade, desespero e nojo essenciais à sua proposta. Ganhou na loteria. (FG)


Avaliação:


Filme: Mortos de Fome Produção: EUA, 1999
Direção: Antonia Bird Com: Guy Pearce, Robert Carlyle Quando: a partir de hoje no Cinearte 1, Morumbi 6 e circuito



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