São Paulo, Sexta-feira, 14 de Maio de 1999
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CINEMA - "OUTRAS HISTÓRIAS"
"Adaptei o cinema a Guimarães Rosa", diz Bial

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

"Não adaptei Guimarães Rosa ao cinema. Adaptei o cinema a Guimarães Rosa." Assim o cineasta e jornalista Pedro Bial, 41, define seu longa-metragem de estréia, "Outras Estórias", que entra hoje em cartaz.
O filme entrelaça cinco contos do livro "Primeiras Estórias", do autor mineiro: "Os Irmãos Dagobé", "Famigerado", "Nada e a Nossa Condição", "Substância" e "Sorôco, Sua Mãe, Sua Filha". Custou R$ 2 milhões e foi filmado na região de Montes Claros, no norte de Minas.
Consciente de sua condição de estreante, Bial cercou-se de uma equipe experiente: José Guerra fez a direção de fotografia, Alcione Araujo colaborou na adaptação das histórias e o ator Cacá Carvalho fez a direção de atores.
O jornalista, que tinha em seu currículo um curta universitário e um documentário sobre Guimarães Rosa para a TV, quer continuar fazendo cinema. Entre seus próximos projetos está uma adaptação do romance "A Lua Vem da Ásia", de Campos de Carvalho. Leia trechos de sua entrevista.

Folha - Por que esses cinco contos do livro, e não outros?
Pedro Bial -
Porque eles me permitiam exercitar vários gêneros, linguagens, vocabulários de cinema: desde o bangue-bangue até uma história de amor, até um "musical", como seria o "Sorôco".
Além disso, eu quis pegar as histórias com temas universais. Uma tratava da morte, outra do medo da morte, outra da sede de justiça, outra de amor, outra de loucura... Na verdade, o tema da loucura permeia todo o resto.
Folha - Você já tinha desde o início a "cara" do filme na cabeça ou mudou muita coisa no processo?
Bial -
O filme saiu surpreendentemente parecido com o que eu imaginei. Como idéia de luz, trabalhamos desde o começo o Degas como referência, aqueles pastéis, aquelas cores. Claro que, transpondo para o cinema, tudo ganha mais nitidez.
Outra concepção inicial que se manteve foi a de não coloquializar, não trazer para o dia-a-dia, não tornar ordinárias aquelas histórias extraordinárias. Manter aquela barroquice, aquele tom operístico. Desde o início, também, pensei num filme feito de planos gerais e de detalhes, de cenas muito claras e outras muito escuras.
Folha - A interpretação do Cacá Carvalho, que faz o Damastor Dagobé, é a mais antinaturalista, a mais teatral de todas. É uma espécie de demônio, o mal personificado. Isso foi proposta sua?
Bial -
Sim. Eu achava que ele tinha que ser endemoniado. Eu buscava muito o "Iauaretê" que ele fez no teatro. Ele virava uma onça no palco, era um negócio fantástico. Ele não queria repetir aquilo, mas eu tentava puxar isso dele. É um personagem que está sempre emitindo ruídos, parece um bicho.
Estava na cara que ele estava "overacting", mas eu disse: "É isso mesmo. Esse cara é um possuído pelo demônio. Vai ficar assim mesmo". Posso até ter errado.
Folha - Você pensou em mimetizar na linguagem visual o virtuosismo literário do Rosa?
Bial -
Houve isso, claro. No próprio plano dos créditos iniciais isso está meio dito. Você começa na imagem daquele livrinho, aí a câmera vai subindo, de repente você vê aquele sertão enorme, os cavaleiros se aproximando lá longe. Houve, sim, a tentativa de ser barroco também na imagem.
Mas a gente não queria fazer gracinha, nem pirotecnia. Houve um cuidado com cada cor, cada enquadramento, cada angulação. Nada está no filme por acaso. Está ali porque quer dizer alguma coisa, cumpre uma função semântica. A gente fez "storyboard" do filme todo, a direção de arte se preocupou com cada detalhe.
Folha - Algumas cenas em que aparecem não-atores têm um tom quase documental. Por exemplo, os trabalhadores que recebem as terras do Tio Man'Antonio...
Bial -
Ali é tudo não-ator. Aqueles planos são chupados do "Olimpíadas" (1938), da Leni Riefenstahl, que é aquela coisa triunfalista, de filmar os atletas de baixo para cima, como semideuses. Queríamos fazer um documento "riefenstahliano".
Como aquela era uma história de reforma agrária, que é uma questão de extremos no Brasil, eu quis pegar uma estética de extremos para contá-la.


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