São Paulo, sexta-feira, 14 de junho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ERIKA PALOMINO

O NOVO EXÉRCITO FASHION DO UNDERGROUND

O underground fashion em São Paulo está de novo em ebulição. A centelha que vem do cenário jovem mais uma vez chacoalha o mainstream -e tudo isso à parte da crise do varejo que corre à boca pequena. Um punhado de novos estilistas faz da customização seu credo e estabelece entre si uma comunidade criativa. Como o movimento vindo dos clubes nos anos 90, que renovou a combalida cena fashion daquela hora, esses meninos e meninas, juntos, ganham status de movimento.
Eles se frequentam, se falam, se namoram. Trocam referências e informações, se estimulam. Gostam de rock, indie e música eletrônica. Vão ao Ritz, Pix, festivais e shows. Ao cinema e a muitas exposições. Acompanham fotografia e artes. São originais e globais. Trabalham silhuetas e texturas. Gostam de internet. São bem-humorados e, ufa, têm o que dizer -quando não morrem de timidez, claro.
Alguns já são mais conhecidos, como Fábia Bercsek e Emilene Galende, que desfilam no Amni Hot Spot (evento dedicado a jovens criadores que começa dia 25 em São Paulo). Eduardo Inagaki e Karlla Girotto pertencem ao elenco da Casa de Criadores, celeiro de modernidades onde olheiros descobrem os próximos talentos (a edição de verão acontece de 7 a 11 de julho, no estacionamento do shopping Eldorado). É lá que vão estrear agora Kuk Jae, ex-assistente de Alexandre Herchcovitch, e a dupla Priscilla Darolt e Fabio Andreoni, da Redhead Loves P.
A novidade da temporada é que esses nomes do underground aparecem em plena Oscar Freire, sob o teto da Ellus, marca de jeanswear com concept-store instalada no número 990 da principal rua de comércio fashion da cidade. Inaugurado no último dia 4 de junho, o segundo andar da loja, batizado em inglês, Second Floor, recebe a produção desses jovens designers num ambiente estimulante e vivo. Na vitrine, lá embaixo, as peças dos iniciantes dividem generosamente o espaço com as roupas da Ellus em si, atraindo a atenção de quem passa. E a atenção do cliente atualmente vale ouro.
"O varejo hoje está sem emoção", justificou o diretor de marketing, Ricardo Gonzales, no último sábado, enquanto panfletava o convite para o coquetel da terça-feira (um DJ e um artista a cada semana são a programação do lugar). Ao abrir espaço para os novos, a Ellus marca pontos com seu público, chama mídia e compradores, chacoalha o esqueleto deste sofrido outono-inverno 2002.
Gonzales tem razão. Mas basta terminar a escada branca que leva ao segundo andar para sentir um sopro de jovialidade e personalidade, vindo de cada parede, de cada arara de roupas dali. Ao contrário do rumo burocratizado que tomamos ao passar os olhos pelas prateleiras da maior parte das coleções de inverno, ali os olhos se confundem. O que ver primeiro? Na parede, uma instalação fotográfica do stylist Dudu Bertholini, ícone de um estilo intencionalmente dirty, sujo. Esse numeroso clã new-dirty inclui ainda o diretor de arte Kleber Matheus e a drag Bianca Exótica. O trabalho do grupo tem como principal exercício o fanzine "2". E o novo estilo se espalha com fitinhas, broches e muitos acessórios.
Respinga já na São Paulo Fashion Week e nas revistas. Veja o trabalho de Chiara Gadaletta, por exemplo, em bons momentos nas edições da "Vogue". Já a vendedora do Second Floor é Melissa Veiga, casada, por sua vez, com o estilista Julien Depeyre, ex-Reinaldo Lourenço, agora na Ellus.
Na outra ponta da sala, uma bancada traz as jóias da bela Marina Sheetkoff, ornamentos urbanos, delicados e femininos. Rouba a cena de primeira, entretanto, um punhado de livros toscos sobre a mesa branca, ao centro. É o trabalho de Tomas Spicolli.
É a grande surpresa do projeto Second Floor. De alguma maneira, quem circula pelo underground tem ouvido falar, aqui e ali, dos outros nomes envolvidos (Priscilla Darolt, a rigor uma estreante, fazia parte do estilo da Ellus). Spicolli apareceu praticamente do nada, depois de um cenário para Carla Fincato e um trabalho na mostra "Bienal E(x)tra".
Argentino, 29 anos, Spicolli é mais que um estilista: trata-se de um artista que se expressa por diferentes mídias. Por isso se destaca. Ele é em si seu universo, coerente e caótico. A amostragem do segundo andar contempla bem seu espectro de atuação (ele integra uma banda de punk rock, Os Sete Magníficos). Dependuradas, camisetas tão criativas parecem gritar, com a mesma linguagem da colagem e da costura, das frases e imagens artísticas. E usáveis. A maior prova disso é que muitas foram efetivamente tiradas do guarda-roupa (será que ele tem um?) do próprio artista, lavadas e colocadas agora à venda.
Atrás há um altarzinho, com um monte de objetos, tranqueira. "É como se fosse o meu quarto", explica Tomas, com sua fala tranquila e leve. Os cadernos são uma espécie de diário, mas, principalmente, uma maneira de reduzir a superfície de trabalho do artista, verdadeiro nômade urbano. "Gosto de andar e de me mexer bastante", diz Spicolli, por aqui desde 98, mas que já passou por várias cidades na Argentina, além de Buenos Aires, e também pelo Chile, Uruguai e por San Francisco. "Me apaixonei muito por São Paulo. A cidade é absurda", diz o artista, que desde criança customizava suas roupas -incluindo o uniforme da escola. "Vejo as coisas como um todo", diz. "E tudo resolvo com colagem: música, moda e até culinária", revela, sobre sua oculta especialidade: sanduíches e pizzas bizarras. "Aprendi com o punk rock a me manter sincero, onde quer que eu esteja", diz. É boa lição para a moda.



Texto Anterior: Site estréia com seção de clipes para download
Próximo Texto: David Bowie ao vivo: Cantor vai da faceta "corporativa" à crítica em show da atual turnê
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.