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São Paulo, sábado, 14 de junho de 2003

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Filosofia selvagem


Em curso no Rio e livro, antropólogo estende aos índios direitos sobre o pensamento conceitual
30.mai.2003/Reuters
NOVA ESCOLA Índio yawalapíti durante ritual no Alto Xingu (MT); antropólogo Eduardo Viveiros de Castro diz que os índios conceituam sua própria filosofia


RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

"A filosofia sempre teve a tradição de convocar selvagens imaginários para suas demonstrações. Está em tempo de usar selvagens reais."
É isso que o autor da frase, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, 52, vem fazendo todas as manhãs de quarta-feira na Quinta da Boa Vista, no Rio, em seu curso sobre "mito e filosofia", parte da pós-graduação em antropologia social da UFRJ.
Viveiros de Castro -apresentado por seu mestre e colega Claude Lévi-Strauss como o fundador de "uma nova escola" na antropologia (ler texto ao lado)- propõe que o "pensamento selvagem" não só é tão complexo quanto o da nossa sociedade (como a antropologia já demostrou) como também é capaz de atingir e colocar em questão uma dimensão que o Ocidente sempre considerou exclusiva sua: a da filosofia.
"No [livro] "O Pensamento Selvagem", Lévi-Strauss tem como questão mostrar até que ponto o pensamento dos selvagens é uma espécie de ciência, só que apenas em outro registro", ele diz.
"Minha questão é ver se o pensamento selvagem não tem outras dimensões que essa comparação termina por obscurecer. Dimensões propriamente filosóficas e dimensões artísticas."
Os índios seriam então capazes de dar um passo atrás e questionar, conceituar, sua própria visão de mundo. Fazer filosofia, enfim, embora não tenham a disciplina institucionalizada como no Ocidente -seja lá o que isso signifique, acrescenta o antropólogo sempre que diz essa palavra.
O modo exato como o fazem é a questão que traz semanalmente para seus cerca de 15 alunos. Após quatro horas de aula no último dia 4, o antropólogo lança a questão de seu trabalho em curso: "Falta um conceito antropológico de conceito".
A visão de mundo comum aos povos indígenas das Américas é apresentada pelo professor em seu livro "A Inconstância da Alma Selvagem" (Cosac & Naify).
É como se os índios pensassem o mundo de forma inversa à nossa, se consideradas as concepções de "natureza" e "cultura". Enquanto o pensamento ocidental teria como chão a idéia de que a natureza é universal e as culturas são particulares (há um só mundo e muitas formas de vivê-lo), para vários povos do continente americano haveria apenas uma cultura, ou um espírito universal, e naturezas particulares dependendo do ponto de vista do observador.
Homens e animais seriam sempre gente, sujeitos dessa cultura geral. Ou seja, todos os animais, para os índios, experimentam (ou experimentaram) os mesmos hábitos: seu alimento -os vermes da carne podre para os urubus, o sangue para os jaguares- é sempre peixe ou cauim, por exemplo; suas relações de grupo são sempre sociais, com ritos, chefes e regras de casamento.
Não é que verme é "como se fosse" peixe para o urubu; ele é visto de fato como tal.
Uma só maneira de ser sujeito, seres que mudam de natureza dependendo da relação em que estão inseridos. Animais predadores e espíritos, por exemplo, vêem os humanos como "animais-presas", enquanto a caça vê os humanos como animais predadores ou espíritos. Ao nos verem como não-humanos, os animais vêem e a si mesmos como humanos.
"Essa maneira que eu encontrei de apresentar essas atitudes características da concepção ameríndia do mundo foi imposta pelo vocabulário que nós herdamos da tradição filosófica ocidental", diz o autor, afirmando que os índios não dispõem de termos imediatamente traduzíveis para as noções de natureza e cultura.
Feita a ressalva, é aqui que entra a provocação do curso, de que os índios são capazes de problemas filosóficos. "Na mitologia indígena e em vários fragmentos de discursos nas etnografias, há formulações quase diretamente glosáveis nesses termos. É preciso tomar cuidado antes de consignar o pensamento indígena à categoria do inconsciente sem mais. Muito do que se passa ali é perfeitamente articulado e claro."
Afirmando finalmente que a filosofia não é privilégio de gregos ou alemães, o antropólogo completa: "Nada que é implícito permanece implícito para sempre", e isso para todos os povos.
E como segunda provocação, outro lado da moeda, Viveiros de Castro afirma que as concepções ameríndias podem colocar em questão a própria filosofia institucionalizada.
"O trabalho do antropólogo é tentar reconstituir a imaginação conceitual, no caso indígena, nos termos da nossa imaginação conceitual, porque a gente não tem outros termos. Mas fazê-lo de tal forma que, se bem feito, seja capaz de fazer a nossa imaginação conceitual sair dos trilhos."
Esse trabalho de descarrilamento, desenvolvimento do curso na UFRJ, sai em livro até o final do ano, até o momento sob o título provisório de "A Desmedida de Todas as Coisas", também pela Cosac & Naify.


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