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São Paulo, sábado, 14 de junho de 2003

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RODAPÉ

A deriva autobiográfica de Roland Barthes

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Roland Barthes por Roland Barthes": nada mais distante de uma autobiografia do que esse simulacro de autobiografia, que acaba de ser reeditada na bela tradução de Leyla Perrone-Moisés. Estão ali todos os elementos de uma história pessoal (fotos de infância, imagens da casa materna, uma cronologia, uma bibliografia). E, no entanto, esse livro fragmentário, quase um caderno de anotações, é a materialização de um projeto literário que se faz justamente sobre os escombros do sujeito "biografável", encerrado em uma continuidade necessária entre vida e obra, em um imaginário que o determina.
Ao lado de Lacan, Althusser, Lévi-Strauss e Foucault, Barthes (1915-1980) foi um dos papas do estruturalismo, corrente de pensamento que rejeitou a idéia de que haveria uma natureza ou essência por trás dos acontecimentos, buscando identificar uma rede impessoal de estruturas simbólicas que produziriam identidades instáveis para os mais diversos fenômenos, desde as relações econômicas e a estrutura epistemológica das ciências até a noção de sujeito.
Em Barthes, o grande linguista do grupo, essa reivindicação da "morte do sujeito" se traduziria num sistema que procurou despir a literatura de todas as âncoras que lhe davam um sentido (uma "psicologia", uma "filosofia") e a engajavam numa realidade extratextual, propondo uma distinção entre a escrita utilitária e a "escritura", a escrita do escritor, intransitiva, cujo fim é sua própria superfície e cujo compromisso político está no movimento de ruptura com uma linguagem ordinária que se coagula em estereótipo, em mercadoria.
Dentro dessa trajetória (que inclui obras como "O Grau Zero da Escritura" e "Mitologias"), "RB por RB" ocupa um lugar estratégico. Afinal, quando a semiologia estruturalista começou a se transformar numa cabala metodológica, tornando-se uma fábrica de estereótipos conceituais, Barthes se afastou e procurou recuperar "O Prazer do Texto" (título de um de seus últimos livros).
É esse gozo da linguagem que imanta cada página de "RB por RB" e faz do texto de crítica um artefato literário, dotando a reflexão de uma intensa expressividade poética. Essa expressividade, porém, não se confunde com a expressão, no sentido de um conteúdo "comunicável". Ela se encerra em si mesma, descerra novos sentidos, amplia as possibilidades de produzir realidade.
Isso seria impossível em uma autobiografia convencional. O que Barthes faz é lançar mão de "biografemas", aplicando a si mesmo um procedimento que utilizou em relação a outros escritores, ou seja, isolar traços descontínuos de uma história pessoal, instantâneos por meio dos quais ele se desenha para além da própria existência.
O livro começa com uma seção de fotos de familiares e lugares afetivos, sempre com anotações que fazem a imagem falar. Sob uma panorâmica da cidade de Bayonne, por exemplo, ele escreve: "Imaginário primordial da infância: a província como espetáculo, a História como odor, a burguesia como discurso". Essas fotografias, contudo, não se confundem com sua obra literária; são "figurações de uma pré-história do corpo -desse corpo que se encaminha para o trabalho". Na rigorosa concepção do livro, o trabalho da escrita não se confunde com o resquício biográfico: "O imaginário das imagens será pois detido na entrada da vida produtiva (...). Um outro imaginário avançará então: o da escritura".
Toda a seção final será, assim, uma glosa dos diversos temas, autores, livros, conceitos e obsessões que percorrem a aventura textual de Barthes, que se transforma num corpo que escreve e numa escrita do corpo. Referindo-se a si na terceira pessoa, ele se despersonaliza e nos oferece uma ética da leitura, "discurso que não se enuncie em nome da Lei e/ou da Violência: cuja instância não seja nem política, nem religiosa, nem científica (...). Como chamaríamos esse discurso? "Erótico", sem dúvida, pois ele tem a ver com o gozo; ou talvez ainda: "estético", se previrmos submeter pouco a pouco essa velha categoria a uma ligeira torção, que a afastará de seu fundo regressivo, idealista, e a aproximará do corpo, da deriva".


Roland Barthes por Roland Barthes
     Autor: Roland Barthes Editora: Estação Liberdade Quanto: R$ 35 (216 págs.)



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