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RODAPÉ
A deriva autobiográfica de Roland Barthes
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Roland Barthes por Roland Barthes": nada mais
distante de uma autobiografia do
que esse simulacro de autobiografia, que acaba de ser reeditada na
bela tradução de Leyla Perrone-Moisés. Estão ali todos os elementos de uma história pessoal (fotos
de infância, imagens da casa materna, uma cronologia, uma bibliografia). E, no entanto, esse livro fragmentário, quase um caderno de anotações, é a materialização de um projeto literário que
se faz justamente sobre os escombros do sujeito "biografável", encerrado em uma continuidade
necessária entre vida e obra, em
um imaginário que o determina.
Ao lado de Lacan, Althusser, Lévi-Strauss e Foucault, Barthes
(1915-1980) foi um dos papas do
estruturalismo, corrente de pensamento que rejeitou a idéia de
que haveria uma natureza ou essência por trás dos acontecimentos, buscando identificar uma rede impessoal de estruturas simbólicas que produziriam identidades instáveis para os mais diversos fenômenos, desde as relações econômicas e a estrutura
epistemológica das ciências até a
noção de sujeito.
Em Barthes, o grande linguista
do grupo, essa reivindicação da
"morte do sujeito" se traduziria
num sistema que procurou despir
a literatura de todas as âncoras
que lhe davam um sentido (uma
"psicologia", uma "filosofia") e a
engajavam numa realidade extratextual, propondo uma distinção
entre a escrita utilitária e a "escritura", a escrita do escritor, intransitiva, cujo fim é sua própria superfície e cujo compromisso político está no movimento de ruptura com uma linguagem ordinária
que se coagula em estereótipo, em
mercadoria.
Dentro dessa trajetória (que inclui obras como "O Grau Zero da
Escritura" e "Mitologias"), "RB
por RB" ocupa um lugar estratégico. Afinal, quando a semiologia
estruturalista começou a se transformar numa cabala metodológica, tornando-se uma fábrica de
estereótipos conceituais, Barthes
se afastou e procurou recuperar
"O Prazer do Texto" (título de um
de seus últimos livros).
É esse gozo da linguagem que
imanta cada página de "RB por
RB" e faz do texto de crítica um
artefato literário, dotando a reflexão de uma intensa expressividade poética. Essa expressividade,
porém, não se confunde com a
expressão, no sentido de um conteúdo "comunicável". Ela se encerra em si mesma, descerra novos sentidos, amplia as possibilidades de produzir realidade.
Isso seria impossível em uma
autobiografia convencional. O
que Barthes faz é lançar mão de
"biografemas", aplicando a si
mesmo um procedimento que
utilizou em relação a outros escritores, ou seja, isolar traços descontínuos de uma história pessoal, instantâneos por meio dos
quais ele se desenha para além da
própria existência.
O livro começa com uma seção
de fotos de familiares e lugares
afetivos, sempre com anotações
que fazem a imagem falar. Sob
uma panorâmica da cidade de Bayonne, por exemplo, ele escreve:
"Imaginário primordial da infância: a província como espetáculo,
a História como odor, a burguesia
como discurso". Essas fotografias,
contudo, não se confundem com
sua obra literária; são "figurações
de uma pré-história do corpo
-desse corpo que se encaminha
para o trabalho". Na rigorosa
concepção do livro, o trabalho da
escrita não se confunde com o
resquício biográfico: "O imaginário das imagens será pois detido
na entrada da vida produtiva (...).
Um outro imaginário avançará
então: o da escritura".
Toda a seção final será, assim,
uma glosa dos diversos temas, autores, livros, conceitos e obsessões
que percorrem a aventura textual
de Barthes, que se transforma
num corpo que escreve e numa
escrita do corpo. Referindo-se a si
na terceira pessoa, ele se despersonaliza e nos oferece uma ética
da leitura, "discurso que não se
enuncie em nome da Lei e/ou da
Violência: cuja instância não seja
nem política, nem religiosa, nem
científica (...). Como chamaríamos esse discurso? "Erótico", sem
dúvida, pois ele tem a ver com o
gozo; ou talvez ainda: "estético", se
previrmos submeter pouco a
pouco essa velha categoria a uma
ligeira torção, que a afastará de
seu fundo regressivo, idealista, e a
aproximará do corpo, da deriva".
Roland Barthes por Roland Barthes
Autor: Roland Barthes
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 35 (216 págs.)
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