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MÚSICA
Artista, morto em consequência de câncer anteontem, aos 53 anos, na cidade, cultivava fama de "maldito" e "difícil"
Itamar Assumpção morreu com cara de SP
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
Poucos homens da música
popular tiveram tanta cara de
São Paulo como teve Itamar Assumpção, morto de câncer anteontem, aos 53 anos. Itamar era
São Paulo em sua face mais sombria, brava, temperamental,
apressada. E criativa.
Como São Paulo, ele tinha uma
percepção rigorosa e diversas vezes cruel de si mesmo. Isso está
exposto em dezenas e dezenas de
suas canções, sempre muito simbolistas e de poesia habitualmente feita de sonoras aliterações poéticas e forte conteúdo conceitual.
Itamar queria ser (era) tropicalista. Sabia-se tão musculoso
quanto eles, embora infinitamente menos valorizado. Ao expectorar versos como "venha até São
Paulo ver o que é bom pra tosse",
dizia, implicitamente: "Venham
até mim, venham me conhecer".
Muitos paulistanos se deixaram
seduzir, mas poucos dos demais
brasileiros o fizeram. Desde muito cedo Itamar forjou e cultivou
(embora esbravejasse que não) a
fama de "maldito", irascível, difícil. Do tempo em que ser "difícil",
para um artista, era qualidade.
Para além de ter se transmutado
em paulistano, esse paulista de
Tietê era também morador convicto da Penha. Num rasgo de exímia ironia, refletiu sobre a condição marginalizada de habitante
da zona leste no funk-soul "Nobody Knows" (94). Traduzidos,
os versos diriam mais ou menos
assim: "Ela me abandonou/ porque moro no lado leste da cidade/
(...) o lado leste é meu santuário".
Sua viagem se deu aos solavancos, como numa linha de metrô
cheia de paradas leste-oeste. Começou vital e fervilhante no tempo de "Beleléu Leléu Eu" (80),
com temas de gancho como "Fico
Louco", "Nego Dito", "Baby".
Emergiu na fartura de experimentalismo e na falta de apuro
técnico de "Às Próprias Custas S/
A" (83) e "Sampa Midnight Isso
Não Vai Ficar Assim" (86), para
chegar ao correto, bem desenhado e secreto "Intercontinental!
Quem Diria! Era Só o Que Faltava!!!" (88). Para "Bicho de Sete
Cabeças", Itamar sonhou que ia
se casar com o pop. Pop era tudo
que o trio de discos era de fato,
com seus altos teores de funk,
samba, rock, tropicália. O bloqueio se deu pela carência de
acesso ao mercadão, compadrios
da MPB, esquemas de jabá.
Acreditando na pureza de princípios, Itamar ainda pensou que
um disco com as redondas canções populares de Ataulfo Alves
pudesse bastar para inverter os
vetores de sempre. Não bastou.
O resultado foi uma amargura e
uma raiva expostas como feridas
abertas no iracundo "Preto Brás"
(98) e nos shows do final da vida.
Itamar Assumpção morreu
com cara de Brasil, desconhecido
pelo Brasil. E ainda com a cara de
sua São Paulo -homem-cidade
gigante e imponente, mas isolado
em si e desabitado de si.
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