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Crítica/"O Despenhadeiro"
Iconoclastia de Fernando Vallejo vale como sacramento católico
Escritor nascido em Medellín lança romance autobiográfico "O Despenhadeiro"
ESPECIAL PARA A FOLHA
Dos escritores latino-americanos, o colombiano Fernando Vallejo, 65, tem como único concorrente, em matéria de espaço na
mídia, o chileno Roberto Bolaño (1953-2003). Ambos têm a
habilidade de externar opiniões radicais, as quais, por
exemplo, igualam políticos corruptos e escritores celebrados
como García Márquez e Pablo
Neruda, que consideram agentes de um "sistema literário"
mistificador.
O uruguaio Eduardo Milán
acha que Vallejo faz parte de
uma literatura empenhada em
"dizer tudo", que "mescla o
marginal -porém o marginal
experimentado pessoalmente- com certa erudição intelecto-literária".
De fato, como problema cultural e literário, o mais decisivo
na escrita de Vallejo é entender
o seu empenho desbocado, que
os antigos chamariam de "parrésia".
Vida à beira da ruína
Tento fazê-lo diante do romance autobiográfico "O Despenhadeiro", de 2001, que está
sendo lançado no Brasil com
excelente tradução de Bernardo Ajzenberg. Simbolicamente,
a imagem do título evidencia a
vida à beira da ruína, mas em
termos precisos refere o passo
em que o narrador, às vésperas
da morte do irmão Darío, lembra-se dos dias loucos e felizes
da juventude em que, a bordo
de um Studebaker, sobem ao
Alto de Minas, "um pequeno
cume qualquer dos Andes",
próximo de Medellín, sua cidade natal.
O carro vai lotado de garotos
de programa, "beldades" a serviço do sexo e da pinga. Densa
neblina encobre os abismos da
estrada em curvas, mas Darío,
ao volante, "nunca perdia o
controle", guiando "com pulso
firme e ciência infusa, sob a
guarda do Espírito Santo".
Na volta, da mesma maneira,
vinha "ziguezagueando barranco abaixo, serpenteando em
nossa cama ambulante". A lembrança feérica surge muitos
anos depois, quando o narrador
volta a Medellín para visitar o
mesmo Darío, agora paciente
terminal de Aids.
É este o evento que realiza o
desastre adiado nos desbarrancos de que se safavam pelo milagre cego do viço, agora perdido para sempre.
O trecho compete em contundência afetiva com outro,
cuja pista está na foto da bela
capa do livro, na qual Darío,
com quatro anos, é abraçado
pelo narrador, de cinco. São
duas crianças lindas, cuja vibração de vida se esfuma no velho álbum de fotos que o moribundo vai repassando, como
em reconhecimento do terreno
do cemitério.
Destaco essa cena fúnebre
porque é o foco para onde converge a narrativa, mas o livro
todo é uma evocação triste da
infância feliz, por meio de uma
enxurrada de impropérios contra tudo e todos, na ocasião das
mortes do irmão e do pai. Fala-se muito da iconoclastia de Vallejo. Mas a iconoclastia, aqui, é
estilo, não política: um estilo
imprecatório cuja função é dramatizar o fundo evocativo e
sentimental do romance.
Iconoclastia e dor
Isoladas de seu uivo lutuoso,
as acusações não têm consistência: à Colômbia, por ser pátria decadente de assassinos; ao
papa João Paulo 2º, por ser
"veado" e omisso; à mãe, por
seu autoritarismo caótico e por
parir 20 filhos; ao irmão mais
novo, por ser espaçoso etc.
Lançadas a torto e a direito, a
esmo, as invectivas querem
apenas confessar a dor pessoal
das perdas da Medellín de sua
infância; do pai, político conservador e honesto da Colômbia anterior aos cartéis da droga e da propina; da avó querida,
do irmão Darío, das beldades:
amores todos cruamente desenganados.
Curiosamente, portanto, o
"dizer tudo" desbocado vale,
aqui, como o sacramento católico, que Vallejo jura odiar.
(ALCIR PÉCORA)
ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da
Universidade Estadual de Campinas (SP) e autor
de "Máquina de Gêneros" (Edusp)
O DESPENHADEIRO
Autor: Fernando Vallejo
Tradução: Bernardo Ajzenberg
Editora: Objetiva/Alfaguara
Quanto: R$ 28,90 (176 págs.)
Avaliação: bom
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