São Paulo, sábado, 14 de junho de 2008

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Crítica/"O Despenhadeiro"

Iconoclastia de Fernando Vallejo vale como sacramento católico

Escritor nascido em Medellín lança romance autobiográfico "O Despenhadeiro"

ESPECIAL PARA A FOLHA

Dos escritores latino-americanos, o colombiano Fernando Vallejo, 65, tem como único concorrente, em matéria de espaço na mídia, o chileno Roberto Bolaño (1953-2003). Ambos têm a habilidade de externar opiniões radicais, as quais, por exemplo, igualam políticos corruptos e escritores celebrados como García Márquez e Pablo Neruda, que consideram agentes de um "sistema literário" mistificador.
O uruguaio Eduardo Milán acha que Vallejo faz parte de uma literatura empenhada em "dizer tudo", que "mescla o marginal -porém o marginal experimentado pessoalmente- com certa erudição intelecto-literária". De fato, como problema cultural e literário, o mais decisivo na escrita de Vallejo é entender o seu empenho desbocado, que os antigos chamariam de "parrésia".

Vida à beira da ruína
Tento fazê-lo diante do romance autobiográfico "O Despenhadeiro", de 2001, que está sendo lançado no Brasil com excelente tradução de Bernardo Ajzenberg. Simbolicamente, a imagem do título evidencia a vida à beira da ruína, mas em termos precisos refere o passo em que o narrador, às vésperas da morte do irmão Darío, lembra-se dos dias loucos e felizes da juventude em que, a bordo de um Studebaker, sobem ao Alto de Minas, "um pequeno cume qualquer dos Andes", próximo de Medellín, sua cidade natal.
O carro vai lotado de garotos de programa, "beldades" a serviço do sexo e da pinga. Densa neblina encobre os abismos da estrada em curvas, mas Darío, ao volante, "nunca perdia o controle", guiando "com pulso firme e ciência infusa, sob a guarda do Espírito Santo".
Na volta, da mesma maneira, vinha "ziguezagueando barranco abaixo, serpenteando em nossa cama ambulante". A lembrança feérica surge muitos anos depois, quando o narrador volta a Medellín para visitar o mesmo Darío, agora paciente terminal de Aids.
É este o evento que realiza o desastre adiado nos desbarrancos de que se safavam pelo milagre cego do viço, agora perdido para sempre. O trecho compete em contundência afetiva com outro, cuja pista está na foto da bela capa do livro, na qual Darío, com quatro anos, é abraçado pelo narrador, de cinco. São duas crianças lindas, cuja vibração de vida se esfuma no velho álbum de fotos que o moribundo vai repassando, como em reconhecimento do terreno do cemitério.
Destaco essa cena fúnebre porque é o foco para onde converge a narrativa, mas o livro todo é uma evocação triste da infância feliz, por meio de uma enxurrada de impropérios contra tudo e todos, na ocasião das mortes do irmão e do pai. Fala-se muito da iconoclastia de Vallejo. Mas a iconoclastia, aqui, é estilo, não política: um estilo imprecatório cuja função é dramatizar o fundo evocativo e sentimental do romance.

Iconoclastia e dor
Isoladas de seu uivo lutuoso, as acusações não têm consistência: à Colômbia, por ser pátria decadente de assassinos; ao papa João Paulo 2º, por ser "veado" e omisso; à mãe, por seu autoritarismo caótico e por parir 20 filhos; ao irmão mais novo, por ser espaçoso etc.
Lançadas a torto e a direito, a esmo, as invectivas querem apenas confessar a dor pessoal das perdas da Medellín de sua infância; do pai, político conservador e honesto da Colômbia anterior aos cartéis da droga e da propina; da avó querida, do irmão Darío, das beldades: amores todos cruamente desenganados.
Curiosamente, portanto, o "dizer tudo" desbocado vale, aqui, como o sacramento católico, que Vallejo jura odiar. (ALCIR PÉCORA)


ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas (SP) e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp)


O DESPENHADEIRO
Autor: Fernando Vallejo
Tradução: Bernardo Ajzenberg
Editora: Objetiva/Alfaguara
Quanto: R$ 28,90 (176 págs.)
Avaliação: bom



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