São Paulo, sábado, 14 de junho de 2008

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Crítica/"Nada"

Espanhola retrata terror social do pós-guerra

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

A descrição da chegada da órfã Andrea à casa dos tios em Barcelona, onde estudaria na faculdade de Letras, é um verdadeiro primor -não exatamente pelo que narra, mas pela forma como o evento é narrado.
O trecho se encontra na abertura de "Nada", primeiro romance da espanhola Carmen Laforet (1921-2004). A Guerra Civil havia terminado, mas seus sinais estavam por toda parte: na miséria dos habitantes, nos edifícios arruinados, na atmosfera lúgubre.
Andrea chega a Barcelona à meia-noite, muito depois do horário combinado. Embora venha do interior, a cidade grande não a assusta; enche-a de expectativa.
Mas, quando a personagem chega à residência da rua Aribau, o "pesadelo", conforme ela explica, instala-se. Pois aquele lugar não surge como uma moradia qualquer, mesmo uma daquelas cujas grades de ferro escurecido das sacadas como que guardam segredos. As luzes mortiças, esverdeadas, rompem aqui e ali as densas trevas. As teias de aranha se espraiam entre os móveis empilhados.
Os habitantes lhe parecem "infernais". Sua cama se assemelha a um "ataúde". O banheiro, descrito como um local "mal-assombrado", tem paredes encardidas que conservam "o rastro de mãos crispadas, de gritos de desespero". É com "indefiníveis terrores" que ela apaga a vela para dormir.
Todos os indícios fornecidos ao leitor não indicam um tratamento propriamente realista, mas importam uma qualidade gótica, grotesca, como se aquele fosse um ambiente sombrio tirado de Edgar Allan Poe ou H.P. Lovecraft.
Pensando na situação política da Espanha -saída da guerra e mergulhada na ditadura franquista-, seria como se todo o terror social que assolava o país houvesse se infiltrado no interior daquele lar ensandecido. O manuscrito de "Nada" rendeu a Carmen, então com apenas 23 anos, o prêmio Nadal de 1944, que garantiu a publicação da obra. O romance é considerado, ao lado de "A Família de Pascual Duarte", de Camilo José Cela, um dos textos renovadores da literatura espanhola.

Romance de formação
"Nada" pode ser comparado a "Perto do Coração Selvagem", de Clarice Lispector, lançado no mesmo ano. Ambos são obras de estréia de autoras muito jovens, acompanham o desenvolvimento espiritual e psicológico por que passam suas protagonistas e podem, neste sentido, ser classificados como "romances de formação".
Além disso, o título de cada um provém de obra alheia. Enquanto Clarice inspirou-se em frase de "Um Retrato do Artista Quando Jovem", de James Joyce ("Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida."), Carmen apoiou-se no poema "Nada", de Juan Ramón Jiménez.
Embora, como em Clarice, sua força derive do estilo vigoroso e do investimento no drama existencial de sua heroína, o modo hiperbólico e esquemático com que pinta seus personagens (reiterando a senilidade da avó, a fúria do tio Juan, a lascívia do tio Román, o autoritarismo da tia Angustias) perde em sutileza e mistério para a brasileira.


NADA
Autora: Carmen Laforet
Tradução: Rubia Prates Goldoni
Editora: Objetiva/Alfaguara
Quanto: R$ 38,90 (264 págs.)
Avaliação: bom



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