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Crítica/"Nada"
Espanhola retrata terror social do pós-guerra
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
A descrição da chegada da
órfã Andrea à casa dos
tios em Barcelona, onde estudaria na faculdade de
Letras, é um verdadeiro primor
-não exatamente pelo que narra, mas pela forma como o
evento é narrado.
O trecho se encontra na abertura de "Nada", primeiro romance da espanhola Carmen
Laforet (1921-2004). A Guerra
Civil havia terminado, mas seus
sinais estavam por toda parte:
na miséria dos habitantes, nos
edifícios arruinados, na atmosfera lúgubre.
Andrea chega a Barcelona à
meia-noite, muito depois do
horário combinado. Embora
venha do interior, a cidade
grande não a assusta; enche-a
de expectativa.
Mas, quando a personagem
chega à residência da rua Aribau, o "pesadelo", conforme ela
explica, instala-se. Pois aquele
lugar não surge como uma moradia qualquer, mesmo uma
daquelas cujas grades de ferro
escurecido das sacadas como
que guardam segredos. As luzes
mortiças, esverdeadas, rompem aqui e ali as densas trevas.
As teias de aranha se espraiam
entre os móveis empilhados.
Os habitantes lhe parecem
"infernais". Sua cama se assemelha a um "ataúde". O banheiro, descrito como um local
"mal-assombrado", tem paredes encardidas que conservam
"o rastro de mãos crispadas, de
gritos de desespero". É com
"indefiníveis terrores" que ela
apaga a vela para dormir.
Todos os indícios fornecidos
ao leitor não indicam um tratamento propriamente realista,
mas importam uma qualidade
gótica, grotesca, como se aquele fosse um ambiente sombrio
tirado de Edgar Allan Poe ou
H.P. Lovecraft.
Pensando na situação política da Espanha -saída da guerra
e mergulhada na ditadura franquista-, seria como se todo o
terror social que assolava o país
houvesse se infiltrado no interior daquele lar ensandecido.
O manuscrito de "Nada" rendeu a Carmen, então com apenas 23 anos, o prêmio Nadal de
1944, que garantiu a publicação
da obra. O romance é considerado, ao lado de "A Família de
Pascual Duarte", de Camilo José Cela, um dos textos renovadores da literatura espanhola.
Romance de formação
"Nada" pode ser comparado
a "Perto do Coração Selvagem",
de Clarice Lispector, lançado
no mesmo ano. Ambos são
obras de estréia de autoras
muito jovens, acompanham o
desenvolvimento espiritual e
psicológico por que passam
suas protagonistas e podem,
neste sentido, ser classificados
como "romances de formação".
Além disso, o título de cada
um provém de obra alheia. Enquanto Clarice inspirou-se em
frase de "Um Retrato do Artista
Quando Jovem", de James Joyce ("Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida."), Carmen
apoiou-se no poema "Nada", de
Juan Ramón Jiménez.
Embora, como em Clarice,
sua força derive do estilo vigoroso e do investimento no drama existencial de sua heroína, o
modo hiperbólico e esquemático com que pinta seus personagens (reiterando a senilidade
da avó, a fúria do tio Juan, a lascívia do tio Román, o autoritarismo da tia Angustias) perde
em sutileza e mistério para a
brasileira.
NADA
Autora: Carmen Laforet
Tradução: Rubia Prates Goldoni
Editora: Objetiva/Alfaguara
Quanto: R$ 38,90 (264 págs.)
Avaliação: bom
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