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Rebolando, cantando e seguindo a canção
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
A famosa neutralidade suíça
foi para o brejo.
A platéia do show de Carla
Perez no Festival de Montreux
rompeu o cordão de isolamento, alucinada com o que estava
vendo. No princípio, pensou-se
que estavam apenas protestando em nome do jazz. Mas não
gritavam Coltrane, Davis,
Monk, Peterson. Gritavam o de
sempre: gostosa, vou te lamber
toda.
Quem diria, eram suíços de
verdade, possivelmente saídos
de uma fábrica de relógios ou
de chocolate. Suíços de vários
cantões, treinados a votar em
referendos e a manter sigilo
bancário, acabaram revelando
o fundo de suas almas: eles
também gostam.
Tudo bem. Os brasileiros
eram considerados imaturos,
incapazes de chegar à fase genital, do mesmo jeito que não
alcançam o pleno desenvolvimento capitalista nem a sociedade de informações. Nos trópicos, era natural que se dançasse em torno de uma garrafa
e que as coisas só funcionassem tocadas por uma boa mexida de cadeiras.
Conheci um suíço que trabalhava num grande banco. Administrava fortunas superiores
a US$ 500 mil. Deixava tudo
armado em casa para gravar a
novela "Dona Beja" e saía
correndo do banco para ver
Maitê Proença tomar banho
nas águas de Minas. Mas a beleza dela é quase angelical, um
refúgio do espírito depois de
horas de aspereza no mundo
financeiro.
Carla Perez é diferente. Como dizíamos no tempo do cinema Paissandu: a mensagem
é outra. A explosão em Montreux não foi um raio em céu
azul. Ela já havia se apresentado em Miami e a gravadora
preparou um vídeo no qual ensina as várias técnicas do
tchan, da garrafa, do bumbum.
Num mundo globalizado,
onde tanto a informação como
o entretenimento são grandes
mercadorias, o bumbum de
Carla Perez pode estar apontando para um grande nicho
industrial. A exportação da felicidade por meio da dança e
da música é um dos caminhos
para os latinos.
Essas danças massificam-se
com facilidade no verão europeu. Eles passam seis meses no
escuro chuvoso e, de repente,
encontram o sol e alguém se
mexendo, freneticamente,
diante deles.
Acreditam que voltaram a
viver.
Sem contar o fato de que há
alguma disponibilidade financeira e tempo, e milhares de
donas-de-casa podem dar seus
primeiros passos em torno da
garrafa e, com isso, alterar a
economia libidinal do continente. Esta é a questão: o nicho
no mundo globalizado pode
atender às crescentes necessidades da economia libidinal,
que talvez seja cada vez mais
importante no século 21.
Os travestis brasileiros são
muito perseguidos na Europa.
No entanto, sobrevivem. Por
quê? Cumprem um papel na
vida de seus clientes, que estão
dispostos a tudo para mantê-los vivos e rodando bolsas
nas esquinas cosmopolitas de
suas grandes cidades.
Carla Perez hoje é apenas
uma espécie de agente destacada dessa possível ofensiva comercial brasileira. Mas é também uma gota no oceano.
Meus deveres paternos me levam sempre à escola de dança.
Vejo que há centenas, milhares
de meninas e adolescentes se
preparando para sacudir o
planeta com suas cadeiras.
Nessas escolas, imita-se muito a dança popular norte-americana. Mas, nas horas vagas,
elas repetem o que vêem na televisão, e o que vêem é Carla
Perez e outros grupos latinos.
Isso não é um cenário ideal
para as feministas. Mas estou
procurando passar o dia sem
julgar ninguém. Apenas tentando imaginar Carla Perez de
costas para a platéia, dançando, mexendo, enquanto, lentamente, se desenha o momento
crucial para os suíços, o momento em que enlouqueceram
no verão de 97.
O momento em que os relógios pararam, dissolveram-se
secretos códigos bancários, esqueceu-se do ouro nos cofres,
um momento que merece uma
placa: por aqui registrou-se
uma rápida passagem do instinto, em julho de 1997.
Se mantemos em suspenso o
julgamento moral, podemos
até entender melhor o sentido
do verbo rebolar. Ele sempre
implicou em esforço. Para conseguir isto, você vai ter que rebolar, meu caro.
É isto que a nova ordem internacional parece estar indicando para os latinos: rebolar.
Não é nada de novo. Sempre se
rebolou, cantou e se seguiu a
canção. A tentativa dos suíços
de romperem os cordões de isolamento foi apenas um mágico
momento de verão.
Todo esse intercâmbio que se
fazia corpo a corpo, no escuro
de um quarto, no banco de
trás do carro, agora será mediado pela indústria: CDs, vídeos, home pages.
E o que é mais interessante
nas migalhas de notícias que
vieram de Montreux: as mulheres também se jogaram no
palco de Carla. Elas, e talvez
não mais seus maridos, podem
se tornar o público-alvo.
Na verdade, já enchem as
academias em busca de um
mínimo de flexibilidade, entram em cursos de striptease
com o objetivo de se apresentarem dentro de casa, para os
maridos.
Quem sabe não farão do século 21 um momento mais erótico da história da humanidade, e as usinas libidinais do
Terceiro Mundo não poderão
ser transplantadas para os países ricos com a segurança que
não tivemos quando nos mandaram suas usinas nucleares.
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