São Paulo, segunda, 14 de julho de 1997.



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Rebolando, cantando e seguindo a canção

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

A famosa neutralidade suíça foi para o brejo.
A platéia do show de Carla Perez no Festival de Montreux rompeu o cordão de isolamento, alucinada com o que estava vendo. No princípio, pensou-se que estavam apenas protestando em nome do jazz. Mas não gritavam Coltrane, Davis, Monk, Peterson. Gritavam o de sempre: gostosa, vou te lamber toda.
Quem diria, eram suíços de verdade, possivelmente saídos de uma fábrica de relógios ou de chocolate. Suíços de vários cantões, treinados a votar em referendos e a manter sigilo bancário, acabaram revelando o fundo de suas almas: eles também gostam.
Tudo bem. Os brasileiros eram considerados imaturos, incapazes de chegar à fase genital, do mesmo jeito que não alcançam o pleno desenvolvimento capitalista nem a sociedade de informações. Nos trópicos, era natural que se dançasse em torno de uma garrafa e que as coisas só funcionassem tocadas por uma boa mexida de cadeiras.
Conheci um suíço que trabalhava num grande banco. Administrava fortunas superiores a US$ 500 mil. Deixava tudo armado em casa para gravar a novela "Dona Beja" e saía correndo do banco para ver Maitê Proença tomar banho nas águas de Minas. Mas a beleza dela é quase angelical, um refúgio do espírito depois de horas de aspereza no mundo financeiro.
Carla Perez é diferente. Como dizíamos no tempo do cinema Paissandu: a mensagem é outra. A explosão em Montreux não foi um raio em céu azul. Ela já havia se apresentado em Miami e a gravadora preparou um vídeo no qual ensina as várias técnicas do tchan, da garrafa, do bumbum.
Num mundo globalizado, onde tanto a informação como o entretenimento são grandes mercadorias, o bumbum de Carla Perez pode estar apontando para um grande nicho industrial. A exportação da felicidade por meio da dança e da música é um dos caminhos para os latinos.
Essas danças massificam-se com facilidade no verão europeu. Eles passam seis meses no escuro chuvoso e, de repente, encontram o sol e alguém se mexendo, freneticamente, diante deles.
Acreditam que voltaram a viver.
Sem contar o fato de que há alguma disponibilidade financeira e tempo, e milhares de donas-de-casa podem dar seus primeiros passos em torno da garrafa e, com isso, alterar a economia libidinal do continente. Esta é a questão: o nicho no mundo globalizado pode atender às crescentes necessidades da economia libidinal, que talvez seja cada vez mais importante no século 21.
Os travestis brasileiros são muito perseguidos na Europa. No entanto, sobrevivem. Por quê? Cumprem um papel na vida de seus clientes, que estão dispostos a tudo para mantê-los vivos e rodando bolsas nas esquinas cosmopolitas de suas grandes cidades.
Carla Perez hoje é apenas uma espécie de agente destacada dessa possível ofensiva comercial brasileira. Mas é também uma gota no oceano.
Meus deveres paternos me levam sempre à escola de dança. Vejo que há centenas, milhares de meninas e adolescentes se preparando para sacudir o planeta com suas cadeiras.
Nessas escolas, imita-se muito a dança popular norte-americana. Mas, nas horas vagas, elas repetem o que vêem na televisão, e o que vêem é Carla Perez e outros grupos latinos.
Isso não é um cenário ideal para as feministas. Mas estou procurando passar o dia sem julgar ninguém. Apenas tentando imaginar Carla Perez de costas para a platéia, dançando, mexendo, enquanto, lentamente, se desenha o momento crucial para os suíços, o momento em que enlouqueceram no verão de 97.
O momento em que os relógios pararam, dissolveram-se secretos códigos bancários, esqueceu-se do ouro nos cofres, um momento que merece uma placa: por aqui registrou-se uma rápida passagem do instinto, em julho de 1997.
Se mantemos em suspenso o julgamento moral, podemos até entender melhor o sentido do verbo rebolar. Ele sempre implicou em esforço. Para conseguir isto, você vai ter que rebolar, meu caro.
É isto que a nova ordem internacional parece estar indicando para os latinos: rebolar. Não é nada de novo. Sempre se rebolou, cantou e se seguiu a canção. A tentativa dos suíços de romperem os cordões de isolamento foi apenas um mágico momento de verão.
Todo esse intercâmbio que se fazia corpo a corpo, no escuro de um quarto, no banco de trás do carro, agora será mediado pela indústria: CDs, vídeos, home pages.
E o que é mais interessante nas migalhas de notícias que vieram de Montreux: as mulheres também se jogaram no palco de Carla. Elas, e talvez não mais seus maridos, podem se tornar o público-alvo.
Na verdade, já enchem as academias em busca de um mínimo de flexibilidade, entram em cursos de striptease com o objetivo de se apresentarem dentro de casa, para os maridos.
Quem sabe não farão do século 21 um momento mais erótico da história da humanidade, e as usinas libidinais do Terceiro Mundo não poderão ser transplantadas para os países ricos com a segurança que não tivemos quando nos mandaram suas usinas nucleares.



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