|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"O EVANGELHO DAS MARAVILHAS"
Um delírio barroco que revê Buñuel, Glauber e Cecil B. de Mille
LEON CAKOFF
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
Trata-se de uma blasfêmia.
"O Evangelho das Maravilhas" é uma vulgarização total da
arte barroca a serviço da religião
secular. Trata-se de um manifesto
minimamente ensaiado por um
verdadeiro aprendiz de feiticeiro,
de um pupilo que vem provar que
domina a pregação anárquica do
seu mestre. De Buñuel, de quem
Arturo Ripstein teve o privilégio
de ser assistente em "O Anjo Exterminador", em 62, aos 18 anos.
Ripstein concluiu com este seu
20º longa um inventário devastador sobre o próprio passado cinematográfico mexicano, que espalhou em seus anos de domínio sobre a América Latina um exemplo
de cinema hipocritamente fiel ao
Novo Testamento. Falsa devoção
que fez por anos, inclusive no Brasil, a vez das pregações catárticas
das igrejas de ocasião.
Muito cínico, Ripstein atira com
o filme também em direção dos
rudimentos de uma memória inconsciente, construída por imagens religiosas fabricadas pelos
filmes bíblicos de Hollywood.
Nessas superproduções que, em
geral, confrontavam rituais pagãos e orgíacos com as fés movedoras de mares e montanhas.
Nesta materialização dos delírios judaico-cristãos, atiçada por
imagens de grandeza do cinema
bíblico americano dos anos 50,
Ripstein contempla-nos ainda
com dois veteranos atores-fetiches de Buñuel em seu exílio mexicano: Katy Jurado (de "El Bruto"), como Mamá Dorita, e Francisco Rabal (de "Viridiana"), como Papá Basílio. É graças a seus
personagens que se forma o caos
visual da profusão barroca. Rabal
parece regredir ainda a um papel
a ele criado por Glauber Rocha,
em 70, para "Cabezas Cortadas".
Mamá Dorita e Papá Basílio são
os donos de uma nova seita oportunista de fim dos tempos. Só que
eles praticam o lenocínio. Ela se
diz profeta e usa seus poderes para trapacear no dominó. Ele é um
ex-padre espanhol exilado, com
uma conduta moral abalada pelo
excesso de vinho e de paixão por
Charlton Heston e seu papel de
Moisés em "Os Dez Mandamentos", de Cecil B. de Mille.
A debilidade e decadência dos
líderes religiosos se acentuam
com a chegada à comunidade da
prostituta Nélida e Tomasa, uma
adolescente de rua. Tomasa é eleita por Mamá Dorita como sua sucessora. O poder logo a corrompe
igual mas, afetada pela jovialidade, exerce-o como uma abelha-mãe. É a única que pode ter relações sexuais e quer ter com todos
os homens dentro da seita para
untá-los com a esperança da salvação eterna. Em sua megalomania barroca, a tirania faz com que
se alce à condição da Virgem Maria. E blasfêmia das blasfêmias,
pratica sexo anal para não perder
uma suposta virgindade.
É um dos filmes mais incômodos de toda a cinematografia latino-americana. Ripstein guarda
com orgulho um bilhete carinhoso a ele deixado pelo mestre Buñuel que fala: "Algum dia direi algo sobre Arturo Ripstein que fará
tremer o mistério".
Ripstein devolve a meditação
com o seguinte texto escrito para
o lançamento desde filme em
Cannes de 1998: "Armada como
um mural mexicano, esta história
de virgens e prostitutas, tambores
e Nintendos, bonecas Barbie e soldados homossexuais, prepara o
roteiro do apocalipse. Somente as
meditações buñuelescas de Papá
Basílio sobre o cinema e a condição humana emergem como uma
verdadeira religião". O cinema
anticlerical e inconformista de
Buñuel é que emerge neste filme
esfuziante de cores e delírios.
O Evangelho das Maravilhas
El Evangelio de las Maravillas
Produção:Brasil/Espanha/ México/
Argentina, 1998
Direção: Arturo Ripstein
Com: Francisco Rabal, Katy Jurado,
Carolina Papaleo
Quando: a partir de hoje no cines Espaço
Unibanco 3 e Lilian Lemmertz
Texto Anterior: "A 3ª Morte de Joaquim Bolívar": Brasileiro é nostálgico em três atos Próximo Texto: Artes Plásticas: Editor da "Visionaire" seleciona obras do Redescobrimento Índice
|