São Paulo, sexta-feira, 14 de julho de 2000


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"O EVANGELHO DAS MARAVILHAS"
Um delírio barroco que revê Buñuel, Glauber e Cecil B. de Mille

LEON CAKOFF
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Trata-se de uma blasfêmia. "O Evangelho das Maravilhas" é uma vulgarização total da arte barroca a serviço da religião secular. Trata-se de um manifesto minimamente ensaiado por um verdadeiro aprendiz de feiticeiro, de um pupilo que vem provar que domina a pregação anárquica do seu mestre. De Buñuel, de quem Arturo Ripstein teve o privilégio de ser assistente em "O Anjo Exterminador", em 62, aos 18 anos.
Ripstein concluiu com este seu 20º longa um inventário devastador sobre o próprio passado cinematográfico mexicano, que espalhou em seus anos de domínio sobre a América Latina um exemplo de cinema hipocritamente fiel ao Novo Testamento. Falsa devoção que fez por anos, inclusive no Brasil, a vez das pregações catárticas das igrejas de ocasião.
Muito cínico, Ripstein atira com o filme também em direção dos rudimentos de uma memória inconsciente, construída por imagens religiosas fabricadas pelos filmes bíblicos de Hollywood. Nessas superproduções que, em geral, confrontavam rituais pagãos e orgíacos com as fés movedoras de mares e montanhas.
Nesta materialização dos delírios judaico-cristãos, atiçada por imagens de grandeza do cinema bíblico americano dos anos 50, Ripstein contempla-nos ainda com dois veteranos atores-fetiches de Buñuel em seu exílio mexicano: Katy Jurado (de "El Bruto"), como Mamá Dorita, e Francisco Rabal (de "Viridiana"), como Papá Basílio. É graças a seus personagens que se forma o caos visual da profusão barroca. Rabal parece regredir ainda a um papel a ele criado por Glauber Rocha, em 70, para "Cabezas Cortadas".
Mamá Dorita e Papá Basílio são os donos de uma nova seita oportunista de fim dos tempos. Só que eles praticam o lenocínio. Ela se diz profeta e usa seus poderes para trapacear no dominó. Ele é um ex-padre espanhol exilado, com uma conduta moral abalada pelo excesso de vinho e de paixão por Charlton Heston e seu papel de Moisés em "Os Dez Mandamentos", de Cecil B. de Mille.
A debilidade e decadência dos líderes religiosos se acentuam com a chegada à comunidade da prostituta Nélida e Tomasa, uma adolescente de rua. Tomasa é eleita por Mamá Dorita como sua sucessora. O poder logo a corrompe igual mas, afetada pela jovialidade, exerce-o como uma abelha-mãe. É a única que pode ter relações sexuais e quer ter com todos os homens dentro da seita para untá-los com a esperança da salvação eterna. Em sua megalomania barroca, a tirania faz com que se alce à condição da Virgem Maria. E blasfêmia das blasfêmias, pratica sexo anal para não perder uma suposta virgindade.
É um dos filmes mais incômodos de toda a cinematografia latino-americana. Ripstein guarda com orgulho um bilhete carinhoso a ele deixado pelo mestre Buñuel que fala: "Algum dia direi algo sobre Arturo Ripstein que fará tremer o mistério".
Ripstein devolve a meditação com o seguinte texto escrito para o lançamento desde filme em Cannes de 1998: "Armada como um mural mexicano, esta história de virgens e prostitutas, tambores e Nintendos, bonecas Barbie e soldados homossexuais, prepara o roteiro do apocalipse. Somente as meditações buñuelescas de Papá Basílio sobre o cinema e a condição humana emergem como uma verdadeira religião". O cinema anticlerical e inconformista de Buñuel é que emerge neste filme esfuziante de cores e delírios.


O Evangelho das Maravilhas
El Evangelio de las Maravillas      Produção:Brasil/Espanha/ México/ Argentina, 1998 Direção: Arturo Ripstein Com: Francisco Rabal, Katy Jurado, Carolina Papaleo Quando: a partir de hoje no cines Espaço Unibanco 3 e Lilian Lemmertz




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