UOL


São Paulo, segunda-feira, 14 de julho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DVD

Caixa ressuscita primeiros longas do cineasta, "A Morte Passou por Perto", "O Grande Golpe" e "Glória Feita de Sangue"

Anos 50 iluminam xadrez de Stanley Kubrick

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Antes de tudo o mais, Stanley Kubrick (1928-99) ficou conhecido pela crítica brasileira como um "cineasta de 70 minutos". O termo, criado pelo crítico Maurício Gomes Leite e encampado por Glauber Rocha em artigo dedicado ao cineasta, na época um ainda precoce e imberbe talento em ascensão, referia-se à pobreza de recursos de suas primeiras obras, lançadas agora em DVD.
O pacote só não é mais precioso porque "Fear and Desire" (1953), o verdadeiro primeiro longa do cineasta, permanece um segredo guardado a sete chaves por sua família, um capítulo obscuro na história da meteórica ascensão do "enfant terrible" nova-iorquino.
Menino prodígio amante de jazz, xadrez e fotografia, Kubrick ganhou sua primeira máquina fotográfica aos 15 anos e, dois anos depois, já era fotógrafo da prestigiosa revista "Look".
Aos 23, começou a se aventurar no cinema. Com recursos próprios, rodou seu primeiro curta ("Day of Fight", 1950) e lucrou de imediato ao vendê-lo, por US$ 4.000, para o estúdio RKO. Seu talento parecia mesmo destinado ao pronto reconhecimento.
Entre 1950 e 1957, com parcos recursos financeiros e vastas ambições, Kubrick realizou a média de um filme por ano (entre curtas e longas), dando a cada passo, como se comprova nas obras incluídas no pacote da Cinemagia, saltos de incríveis proporções.
A evolução de "A Morte Passou por Perto" (1955) a "O Grande Golpe" (56) é assustadora, e a de "O Grande Golpe" a "Glória Feita de Sangue" (57) não é mais do que a revelação de um gênio.
Mais do que o Kubrick fotógrafo e diretor, é o Kubrick montador que se revela nesse processo. Foi salvando seu "A Morte Passou por Perto" na sala de montagem que Kubrick começou a conceber essa obra-prima da montagem moderna que é "O Grande Golpe". Os dois são filmes noir depauperados, rodados com atores de segunda linha (coadjuvantes de carreira), entre interiores mal cenografados e externas nova-iorquinas improvisadas. Mas, de um a outro, Kubrick reescreve a história da evolução da montagem cinematográfica.
No primeiro, o diretor utiliza os flashbacks à maneira tradicional do cinema hollywoodiano clássico, como um recurso (derradeiro) para tapar as lacunas (derradeiras) da narrativa, cimentá-la tal qual um bloco compacto, sem falhas (sem descontinuidades).
Em "O Grande Golpe", Kubrick, inspirado por "A Defesa de Lujin", de Nabokov, usa os flashbacks à maneira moderna, salientando mais do que camuflando a descontinuidade narrativa.
Se a crítica costuma considerar "O Grande Golpe" como sua verdadeira obra inaugural, é porque nele já se afirmam a pulsação e o andamento típicos do estilo (nevrálgico) kubrickiano. É seu temperamento nervoso, seco, cerebral que surge dessa "soma dos fragmentos perdidos do quebra-cabeça" de que nos fala o narrador no início do filme.
Kubrick incrementa a relojoaria determinista do noir, reordenando-a sob novas coordenadas. Seu filme é tão meticulosamente montado e cronometrado quanto o assalto que encena. Kubrick não se cansará doravante de montar sistemas perfeitos apenas para lhes denunciar as falhas.
Em "O Grande Golpe", o xadrez já servia como metáfora (a crítica não notou, mas, com sua máscara de bispo, Johnny Clay só se movimentava em diagonal durante o assalto), mas é com "Glória Feita de Sangue", clássico antibélico, que Kubrick monta seu grande tabuleiro de xadrez esférico.
Os soldados são como peões, obrigados a andar para a frente, para a morte, sacrificados pela ambição de generais (os reis encastelados). Kirk Douglas (o cavalo) faz o coronel que percorre, em movimentos perpendiculares, o caminho entre as trincheiras e os castelos, soldados e generais.
Kubrick não faz senão projetar o seu cérebro sobre o mundo. Seus cenários (a casa de "O Iluminado", a grande e luminosa mesa redonda de "Dr. Fantástico", o computador de "2001") evidenciarão cada vez mais essa identidade entre o cérebro e o mundo tão cara ao universo kubrickiano.


STANLEY KUBRICK. Box com "A Morte Passou por Perto", "O Grande Golpe" e "Glória Feita de Sangue". Lançamento: Cinemagia. Quanto: R$ 119.


Texto Anterior: Música: Originais de Elizeth Cardoso ganham reedição
Próximo Texto: Panorâmica - Tecno: Cerca de 500 mil vão à Love Parade de Berlim
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.