São Paulo, terça, 14 de julho de 1998

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Tenor Roberto Alagna não convence


ANDREA LOMBARDI
especial para a Folha

A gravação do tenor francês Roberto Alagna dedicada ao gênero popular da serenata napolitana não convence. Talvez o erro seja nosso: não conseguimos mais escutar música napolitana sem preconceito.
Embora Alagna seja delicado, e o acompanhamento realizado pelos irmãos ao violão, elaborado, o disco como um todo não consegue afastar uma certa impressão de kitsch.
"Serenades" (EMI, 1997) é o título que reúne 21 peças, dentre as quais 14 canções napolitanas, em que o tenor reinterpreta, entre outros, clássicos como "O Sole Mio, Torna a Surriento, Fenesta ca Lucive".
Por muitos já considerado o quarto na escala mundial (naturalmente depois de Pavarotti, Carreras e Plácido Domingo), o tenor Roberto Alagna é produto de uma formação autodidata.
Começou como violonista e compositor de música popular e teve sua performance apresentada por longo tempo em cabarés na França, até ganhar, em 1988, o prestigioso concurso Pavarotti (Filadélfia, EUA).
O propósito de Alagna de homenagear seus ancestrais (ele é neto de imigrantes sicilianos, como gosta de enfatizar) com certeza é sincero; sua interpretação pode ser considerada correta, sem pretensões, comedida, substituindo, por exemplo, bandolins plangentes por violões, algo mais correto do que os exageros a que chegou, interpretando em parte as mesmas canções, Luciano Pavarotti.
Kitsch
Mas o fato de essa gravação constituir uma mistura de serestas napolitanas com serenatas de ópera (de Leoncavallo, Bizet, Rossini e até uma canzonetta do "Don Giovanni", de Mozart) é a própria confirmação do kitsch: "Uma comunicação que intenciona a provocação de um efeito já previsto", como definiu Umberto Eco, o supra-sumo do déjà vu.
É uma pena, pois existe uma ingenuidade e uma leveza nas letras de algumas dessas serenatas (menos na melodia e no acompanhamento), que mereceria uma atenção maior: os diminutivos e a elegância típica do dialeto napolitano se perdem, um pouco pelo sotaque forçado de Alagna, um pouco pela própria dificuldade de entender o texto, como na famosíssima e bombástica "Torna a Surriento", cuja imagem de que o sentimento "scetato o fa sunnà" (acordado o faz sonhar) lembra um pouco o devaneio como descrito por Freud.
Entretanto, Alagna com sua interpretação valoriza a deliciosa "A Vucchella" (A Boquinha), cuja tradução parece inevitavelmente fadada a confirmar o kitsch: "Si comm'a nu sciorillo/ tiene na vucchella/ nu pocorillo appassuliatella... Dammillo e pigliatillo/ Nu vaso piccerillo" (Você é como uma florzinha/ com sua boquinha/ um pouquinho murchinha... Dê cá e pegue lá/ um beijo pequeninho).
O que em dialeto napolitano é graça, em português soa como derramamento sentimental.
Estereótipo
A canção napolitana, de fato, evoca um estereótipo altamente desgastado: a serenata noturna para a amada, acompanhada de bandolins, a sacada, o sol, o mar, o luar e, no horizonte, o Vesúvio e Capri.
A própria cidade de Nápoles sempre atraiu o olhar do viajante estrangeiro culto (de Montaigne a Goethe, de Stendhal a Taine), que viu nela o mito ainda vivo de uma humanidade natural, autêntica, pobre, mas astuta, cujo modelo arcaico encontra-se já no "Decamerão", do escritor italiano Giovanni Boccaccio.
O contraponto à autenticidade "napolitana" da serenata se dá, aqui, pelo sutil jogo irônico na canzonetta "Deh Vieni alla Finestra", do segundo ato da ópera "Don Giovanni", de Mozart, quando o protagonista, após ter abandonado Elvira, a atrai novamente, apenas para fazê-la cair nos braços de seu fiel criado Leporello.
Algo que nos faz lembrar que por trás da suposta autenticidade do napolitano, uma espécie de bom selvagem moderno dentro do coração da civilização ocidental, está uma ficção, um equívoco produzido pelo desejo do próprio observador externo.
Talvez não seja um mero acaso que, nesta cidade, a tradição do melodrama tenha sido sempre muito forte, no duplo sentido de tradição operística e de exagero, pura mise en scène.

Disco: Serenades
Intérprete: Roberto Alagna
Lançamento: EMI
Quanto: R$ 18, em média



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