São Paulo, terça, 14 de julho de 1998

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Cinza é a cor de Sergei Prokofiev

especial para a Folha

Cinzerário: a palavra inventada do poeta Khlébnikov sugere em poucas letras a carga de invenção e ambiguidade dessa música de guerra.
Prokofiev (1891-1953) é capaz de pintar o arco-íris de cinza, fazendo valer cada nuance do gris. Cinza é a cor das cinzas -simbólicas e reais- que o atormentaram em seu retiro forçado na Geórgia, durante a guerra, num dos tantos auges do expurgo stalinista. Para nós, em português, a palavra tem outras por dentro: sim, zero, rio, quase uma ária.
Langorário: Mikhail Pletnev não é o intérprete mais encantado pelos langores da "Sonata nş 8", estreada por Gilels, em 1944, e tornada sua propriedade para sempre por Sviatoslav Richter, numa gravação recentemente reeditada (DGG).
Mas sua interpretação compensa essa perda com uma nova fluidez, um romance inteiro de idéias e sensações, compactado em 29 minutos.
Frigidário, por comparação a outros pianistas, como Oleg Marshev, Kissin ou Pogorelich, Pletnev, de sua parte, toca a "Sonata nş 2" melhor do que ninguém. Pouco conhecida, a "Sonata" é uma dessas que caem de lugar nenhum na imaginação de um compositor de 20 anos.
A "Sonata" está para Prokofiev como a "Petite Suite" para Debussy: uma visão perfeita da primeira música, inocente de tudo o que ainda vai ter de passar.
Placitudinário e larguesco, o "Andante" é uma das últimas visões da Rússia perdida, pré-revolução, isolado em sonho e sentimento, entre o engenho ritmado do Scherzo, antes, e a tocata de acertos trocados, depois.
"Prokofiev trabalha como um relógio", dizia seu parceiro, o cineasta Eisenstein (para quem o compositor escreveu a trilha de "Alexander Nevsky" e "Ivan, o Terrível").
"Sempre quis inventar melodias que pudessem ser compreendidas por uma grande quantidade de pessoas: melodias simples, cantáveis", comentava com frequência Prokofiev.
Suas palavras são aparentemente sinceras, em que pese o risco a que se expunha um compositor tão original -o mais cosmopolita dos músicos russos deste século- sob a vigilância do Sindicato dos Compositores Soviéticos.
Mecanismo e melodia não chegam a ser contraditórios nessa música que só hoje encontra ouvidos um pouco mais livres de preconceito político e musical.
O que é longuesco em Prokofiev tem de ser escutado com abandono -seja o "Andante" da "Sonata nş 7", que cita e recicla uma das canções do "Liederkreis", de Schumann, seja o primeiro movimento da "Sonata nş 8", dedicado a Mira Mendelson, novo amor do compositor quinquagenário (homenageada, também, no "Andante", que recria um minueto da ópera "Evgeny Onegin", de Tchaikovski).
O que é altesco compõe ambivalências da mesma ordem, mas com outro vocabulário: entre a "simplicidade" idealizada pelo filho pródigo em retorno à mãe Rússia, depois de 15 anos de brilho e luxo em Paris e nos Estados Unidos, e a "complexidade" de "uma árvore carregada de frutos", como escreveu Sviatoslav Richter, sobre a "Oitava".
Pletnev não tem como competir com a gravação da "Sonata nş 7" por Maurizio Pollini, noutro disco antológico relançado há pouco (série "The Originals", da DGG).
Parece um tanto acanhado e sem força para enfrentar o profundesco dessa música dividida, no centro musical, se não necessariamente afetivo, da "Trilogia de Guerra" ("Sonatas" 6 a 8).
A grande revelação do disco é a "Sonata nş 2". Mas a grande visão é a "nş 8", em que o horresco ganha tons de experiência, não de espetáculo, e o gigantesco vem coincidir com o que de mais íntimo existe na música de Prokofiev.
"Cinzerário / Langorário / Frigidário / Placitudinário / Larguesco / Longuesco / Altesco / Profundesco / Horresco / Gigantesco": o poema futurista de Khlébnikov (em tradução de Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman) reúne em dez palavras um sem-fim de promessas e sombras.
Serve de epigrama para essa gravação; e serve de epitáfio para a música redescoberta, um sem-fim de promessas e sombras, do maior compositor dos piores tempos da história. (AN)

Disco: Sonatas nş 2, 7, 8 Compositor: Sergei Prokofiev
Pianista: Mikhail Pletnev
Lançamento: DGG Quanto: R$ 18, em média


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