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Cinza é a cor de Sergei Prokofiev
especial para a Folha
Cinzerário: a palavra inventada
do poeta Khlébnikov sugere em
poucas letras a carga de invenção e
ambiguidade dessa música de
guerra.
Prokofiev (1891-1953) é capaz de
pintar o arco-íris de cinza, fazendo
valer cada nuance do gris. Cinza é
a cor das cinzas -simbólicas e
reais- que o atormentaram em
seu retiro forçado na Geórgia, durante a guerra, num dos tantos auges do expurgo stalinista. Para
nós, em português, a palavra tem
outras por dentro: sim, zero, rio,
quase uma ária.
Langorário: Mikhail Pletnev não
é o intérprete mais encantado pelos langores da "Sonata nş 8", estreada por Gilels, em 1944, e tornada sua propriedade para sempre
por Sviatoslav Richter, numa gravação recentemente reeditada
(DGG).
Mas sua interpretação compensa
essa perda com uma nova fluidez,
um romance inteiro de idéias e
sensações, compactado em 29 minutos.
Frigidário, por comparação a
outros pianistas, como Oleg Marshev, Kissin ou Pogorelich, Pletnev, de sua parte, toca a "Sonata
nş 2" melhor do que ninguém.
Pouco conhecida, a "Sonata" é
uma dessas que caem de lugar nenhum na imaginação de um compositor de 20 anos.
A "Sonata" está para Prokofiev
como a "Petite Suite" para Debussy: uma visão perfeita da primeira música, inocente de tudo o
que ainda vai ter de passar.
Placitudinário e larguesco, o
"Andante" é uma das últimas visões da Rússia perdida, pré-revolução, isolado em sonho e sentimento, entre o engenho ritmado
do Scherzo, antes, e a tocata de
acertos trocados, depois.
"Prokofiev trabalha como um
relógio", dizia seu parceiro, o cineasta Eisenstein (para quem o
compositor escreveu a trilha de
"Alexander Nevsky" e "Ivan, o
Terrível").
"Sempre quis inventar melodias
que pudessem ser compreendidas
por uma grande quantidade de
pessoas: melodias simples, cantáveis", comentava com frequência
Prokofiev.
Suas palavras são aparentemente sinceras, em que pese o risco a
que se expunha um compositor
tão original -o mais cosmopolita
dos músicos russos deste século-
sob a vigilância do Sindicato dos
Compositores Soviéticos.
Mecanismo e melodia não chegam a ser contraditórios nessa
música que só hoje encontra ouvidos um pouco mais livres de preconceito político e musical.
O que é longuesco em Prokofiev
tem de ser escutado com abandono -seja o "Andante" da "Sonata nş 7", que cita e recicla uma
das canções do "Liederkreis", de
Schumann, seja o primeiro movimento da "Sonata nş 8", dedicado a Mira Mendelson, novo amor
do compositor quinquagenário
(homenageada, também, no "Andante", que recria um minueto da
ópera "Evgeny Onegin", de
Tchaikovski).
O que é altesco compõe ambivalências da mesma ordem, mas
com outro vocabulário: entre a
"simplicidade" idealizada pelo
filho pródigo em retorno à mãe
Rússia, depois de 15 anos de brilho
e luxo em Paris e nos Estados Unidos, e a "complexidade" de
"uma árvore carregada de frutos", como escreveu Sviatoslav
Richter, sobre a "Oitava".
Pletnev não tem como competir
com a gravação da "Sonata nş 7"
por Maurizio Pollini, noutro disco
antológico relançado há pouco
(série "The Originals", da DGG).
Parece um tanto acanhado e sem
força para enfrentar o profundesco dessa música dividida, no centro musical, se não necessariamente afetivo, da "Trilogia de
Guerra" ("Sonatas" 6 a 8).
A grande revelação do disco é a
"Sonata nş 2". Mas a grande visão é a "nş 8", em que o horresco
ganha tons de experiência, não de
espetáculo, e o gigantesco vem
coincidir com o que de mais íntimo existe na música de Prokofiev.
"Cinzerário / Langorário / Frigidário / Placitudinário / Larguesco
/ Longuesco / Altesco / Profundesco / Horresco / Gigantesco": o
poema futurista de Khlébnikov
(em tradução de Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman) reúne
em dez palavras um sem-fim de
promessas e sombras.
Serve de epigrama para essa gravação; e serve de epitáfio para a
música redescoberta, um sem-fim
de promessas e sombras, do maior
compositor dos piores tempos da
história.
(AN)
Disco: Sonatas nş 2, 7, 8
Compositor: Sergei Prokofiev
Pianista: Mikhail Pletnev
Lançamento: DGG
Quanto: R$ 18, em média
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