São Paulo, terça-feira, 14 de agosto de 2001

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Pesquisador ainda vê "vícios" na história do país

DA REDAÇÃO

Leia abaixo os principais trechos da entrevista que o historiador Evaldo Cabral de Mello concedeu à Folha, por telefone, de sua casa, no Rio de Janeiro. (SC)

Folha - O senhor atribui a dificuldade que existe de compreender a importância de Frei Caneca e o fato de ele não ter se tornado uma figura nacional à nossa historiografia de tradição "saquarema". Crê que os historiadores cometam os mesmos vícios hoje?
Evaldo Cabral de Mello -
Sim, ainda se cometem os mesmos vícios, mas inconscientemente. Para a historiografia brasileira, o processo de Independência política continua a ser uma história virada exclusivamente para Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.

Folha - O senhor diz que Frei Caneca representava uma alternativa possível à Independência que foi construída no Rio. Como acredita que a história do Brasil poderia ter sido caso a Independência fosse feita em Pernambuco?
Cabral de Mello -
Creio que o Império não teria se constituído da maneira como foi, como um Império de feição autoritária. E nem seria tão centralizado, com o domínio das antigas elites portuguesas, algo que caracterizou todo o período de d. Pedro 1º até a Abdicação (7 de abril de 1831).

Folha - O senhor diz que Frei Caneca tinha tudo para seguir o estilo de vida e de pensamento dos reinóis (portugueses que haviam se fixado no Brasil), pela origem paterna e pela formação. O que acredita que o tenha desviado para assumir uma postura combativa?
Cabral de Mello -
Seu período no seminário de Olinda certamente ajudou a definir isso. O seminário havia sido criado em 1801 para melhorar a qualidade do clero na região e acabou se transformando num viveiro de ideólogos, formando inclusive muitos padres que participaram da revolução de 1817 e depois na de 1824.
Frei Caneca foi uma espécie de iluminista tardio. Toda cultura dele era iluminista, e isso fica claro quando vemos os autores que ele costumava citar. Sua cultura era enciclopedista. Ele foi uma pessoa de uma formação intelectual riquíssima para um brasileiro da época, sobretudo para alguém que nunca saiu de Pernambuco, a não ser no período em que esteve preso na Bahia. Além dos escritos políticos, escreveu tratados de retórica e de geometria e poesia, ainda que esta não tenha sido lá de grande qualidade.

Folha - Sua produção literária não é muito conhecida, não?
Cabral de Mello -
Não, não é, mas foi publicada em Pernambuco. Para esse livro, selecionei apenas os escritos políticos. Literatura não era o forte dele ao lado das outras coisas que produziu. Acho que, hoje, tem interesse só para historiadores da literatura. Mas pode ser que amanhã se descubra que seus poemas são formidáveis.

Folha - O senhor fala de uma carta de amor que ele teria escrito quando preso.
Cabral de Mello -
Tratava-se de um poema, e ele se referia à mulher como Marília, um nome convencional da poesia arcádica. Como poeta, Frei Caneca foi um arcádico tardio. Dizia-se que ele tinha vivido com uma mulher no Recife e tido duas filhas. Esse poema teria sido escrito para ela. Nas cartas, ele chamava as meninas de "afilhadas", que era como os padres se referiam aos filhos.

Folha - A atividade política de Frei Caneca deu-se mais por meio dos seus escritos do que por meio da ação. Em sua opinião, quem foi o correspondente de Frei Caneca no campo da ação?
Cabral de Mello -
A pessoa que tentou fazer a Independência alternativa de que falávamos foi Gervásio Pires Ferreira, que era filho de um grande comerciante português. Ele foi o presidente do primeiro governo autônomo de Pernambuco. Essa junta foi derrubada por iniciativa de d. Pedro 1º porque estava cobrando do governo uma política diferente da de José Bonifácio, autoritária. Queria uma política que contemplasse os interesses regionais.

Folha - Em "A Ferida de Narciso" o senhor diz que Pernambuco teria sentido uma frustração por não receber um tratamento especial de Portugal depois da expulsão dos holandeses. É a partir daí que toma força o nativismo?
Cabral de Mello -
Exatamente, criou-se uma espécie de ressentimento regional que vem desde essa época. Pelo menos um ressentimento regional no que diz respeito às classes dirigentes.

Folha - Então é a saída dos holandeses, mais do que sua chegada, que causa uma cisão em Pernambuco?
Cabral de Mello -
Sim, é a vitória contra os holandeses que vai causar essa frustração em relação aos portugueses. É um pouco como aconteceu na América do Norte. Todas as dificuldades que os americanos começaram a ter com os ingleses começaram depois da Guerra dos Sete Anos, que terminou em 1763, quando ingleses e americanos conseguiram expulsar os franceses do Canadá.
As colônias inglesas do Atlântico -que viriam a formar os EUA- tiveram papel destacado ao lado dos ingleses contra os franceses. Quando acabou a guerra, começou a haver discórdia entre americanos e ingleses. É a mesma situação, uma guerra contra uma outra potência européia produziu uma divergência entre reinóis e americanos na América.


A FERIDA DE NARCISO - ENSAIO DE HISTÓRIA REGIONAL. Autor: Evaldo Cabral de Mello. Editora: Senac (tel. 0/ xx/11/284-4322, na internet: www.sp.senac.br). Quanto: R$ 12 (115 págs.).

FREI JOAQUIM DO AMOR DIVINO CANECA. Organização e introdução: Evaldo Cabral de Mello. Editora: 34 (tel. 0/xx/11/3816-6777). Quanto: R$ 44 (648 págs.).




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