|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Pesquisador ainda vê "vícios" na história do país
DA REDAÇÃO
Leia abaixo os principais trechos da entrevista que o historiador Evaldo Cabral de Mello concedeu à Folha, por telefone, de
sua casa, no Rio de Janeiro.
(SC)
Folha - O senhor atribui a dificuldade que existe de compreender a
importância de Frei Caneca e o fato
de ele não ter se tornado uma figura nacional à nossa historiografia
de tradição "saquarema". Crê que
os historiadores cometam os mesmos vícios hoje?
Evaldo Cabral de Mello - Sim, ainda se cometem os mesmos vícios,
mas inconscientemente. Para a
historiografia brasileira, o processo de Independência política continua a ser uma história virada exclusivamente para Rio de Janeiro,
São Paulo e Minas Gerais.
Folha - O senhor diz que Frei Caneca representava uma alternativa
possível à Independência que foi
construída no Rio. Como acredita
que a história do Brasil poderia ter
sido caso a Independência fosse
feita em Pernambuco?
Cabral de Mello - Creio que o Império não teria se constituído da
maneira como foi, como um Império de feição autoritária. E nem
seria tão centralizado, com o domínio das antigas elites portuguesas, algo que caracterizou todo o
período de d. Pedro 1º até a Abdicação (7 de abril de 1831).
Folha - O senhor diz que Frei Caneca tinha tudo para seguir o estilo
de vida e de pensamento dos reinóis (portugueses que haviam se fixado no Brasil), pela origem paterna e pela formação. O que acredita
que o tenha desviado para assumir
uma postura combativa?
Cabral de Mello - Seu período no
seminário de Olinda certamente
ajudou a definir isso. O seminário
havia sido criado em 1801 para
melhorar a qualidade do clero na
região e acabou se transformando
num viveiro de ideólogos, formando inclusive muitos padres
que participaram da revolução de
1817 e depois na de 1824.
Frei Caneca foi uma espécie de
iluminista tardio. Toda cultura
dele era iluminista, e isso fica claro quando vemos os autores que
ele costumava citar. Sua cultura
era enciclopedista. Ele foi uma
pessoa de uma formação intelectual riquíssima para um brasileiro
da época, sobretudo para alguém
que nunca saiu de Pernambuco, a
não ser no período em que esteve
preso na Bahia. Além dos escritos
políticos, escreveu tratados de retórica e de geometria e poesia,
ainda que esta não tenha sido lá
de grande qualidade.
Folha - Sua produção literária
não é muito conhecida, não?
Cabral de Mello - Não, não é, mas
foi publicada em Pernambuco.
Para esse livro, selecionei apenas
os escritos políticos. Literatura
não era o forte dele ao lado das
outras coisas que produziu. Acho
que, hoje, tem interesse só para
historiadores da literatura. Mas
pode ser que amanhã se descubra
que seus poemas são formidáveis.
Folha - O senhor fala de uma carta de amor que ele teria escrito
quando preso.
Cabral de Mello - Tratava-se de
um poema, e ele se referia à mulher como Marília, um nome convencional da poesia arcádica. Como poeta, Frei Caneca foi um arcádico tardio. Dizia-se que ele tinha vivido com uma mulher no
Recife e tido duas filhas. Esse poema teria sido escrito para ela. Nas
cartas, ele chamava as meninas de
"afilhadas", que era como os padres se referiam aos filhos.
Folha - A atividade política de
Frei Caneca deu-se mais por meio
dos seus escritos do que por meio
da ação. Em sua opinião, quem foi o
correspondente de Frei Caneca no
campo da ação?
Cabral de Mello - A pessoa que
tentou fazer a Independência alternativa de que falávamos foi
Gervásio Pires Ferreira, que era filho de um grande comerciante
português. Ele foi o presidente do
primeiro governo autônomo de
Pernambuco. Essa junta foi derrubada por iniciativa de d. Pedro
1º porque estava cobrando do governo uma política diferente da de
José Bonifácio, autoritária. Queria
uma política que contemplasse os
interesses regionais.
Folha - Em "A Ferida de Narciso" o
senhor diz que Pernambuco teria
sentido uma frustração por não receber um tratamento especial de
Portugal depois da expulsão dos
holandeses. É a partir daí que toma
força o nativismo?
Cabral de Mello - Exatamente,
criou-se uma espécie de ressentimento regional que vem desde essa época. Pelo menos um ressentimento regional no que diz respeito às classes dirigentes.
Folha - Então é a saída dos holandeses, mais do que sua chegada,
que causa uma cisão em Pernambuco?
Cabral de Mello - Sim, é a vitória
contra os holandeses que vai causar essa frustração em relação aos
portugueses. É um pouco como
aconteceu na América do Norte.
Todas as dificuldades que os americanos começaram a ter com os
ingleses começaram depois da
Guerra dos Sete Anos, que terminou em 1763, quando ingleses e
americanos conseguiram expulsar os franceses do Canadá.
As colônias inglesas do Atlântico -que viriam a formar os
EUA- tiveram papel destacado
ao lado dos ingleses contra os
franceses. Quando acabou a guerra, começou a haver discórdia entre americanos e ingleses. É a
mesma situação, uma guerra contra uma outra potência européia
produziu uma divergência entre
reinóis e americanos na América.
A FERIDA DE NARCISO - ENSAIO DE
HISTÓRIA REGIONAL. Autor: Evaldo
Cabral de Mello. Editora: Senac (tel. 0/
xx/11/284-4322, na internet:
www.sp.senac.br). Quanto: R$ 12 (115
págs.).
FREI JOAQUIM DO AMOR DIVINO
CANECA. Organização e introdução:
Evaldo Cabral de Mello. Editora: 34 (tel.
0/xx/11/3816-6777). Quanto: R$ 44 (648
págs.).
Texto Anterior: Evaldo Cabral de Mello visita feridas abertas do Brasil Próximo Texto: Trecho Índice
|