São Paulo, sexta, 14 de agosto de 1998

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FORNADA DO MILÊNIO
Estrelas do fracasso zombam de quem deu certo

GERALD THOMAS
de Nova York

"Um real! Somente um real! Você vai me dar um real e vai ser a-g-o-r-a!", gesticulava freneticamente um bêbado, um louco, um mendigo, um gênio da praça da Sé.
Fiquei meio sem fala. Ele parecia, na verdade, um ex-hippie, um mártir da contracultura, um sobrevivente dos anos 60. Com seus gestos e sua roupa, podia estar num palco fazendo o papel de bobo da corte de uma das peças de Shakespeare, ou de um dos vagabundos de Beckett.
Mas estava ali na praça da Sé, enlouquecendo, apodrecendo aos poucos. Dei-lhe uma nota de R$ 5 que encontrei no bolso. Ele tomou a nota em suas mãos imundas e parou de gesticular, parou de tremer, e , sem dizer uma única palavra, colocou-se a andar.
Ainda o acompanhei por alguns segundos e o vi encostar numa árvore, curvar seu corpo e vomitar. Depois, voltou ao normal, andou mais um pouco e foi se sentar num banco com outros mendigos, loucos, bêbados. Imóvel e "no mundo da lua", ele parecia sair de um desenho de Crumb, Henfil, Wolinski ou Angeli, sentado naquele banco, cercado por pivetes que o provocavam, corriam e riam dele.
Dias mais tarde, encontro na esquina da rua 8 com a Broadway, no Village, uma mulher doida, estranha, que observo há anos, literalmente, há duas décadas. Ela já foi militante de um grupo que advogava contra a indústria pornográfica sadomasoquista. Na sua frente havia sempre uma mesinha improvisada, com fotos de mulheres amordaçadas, amarradas e cortadas.
Ela berrava, gesticulava e, volta e meia, metia dois dedos na garganta como se fosse vomitar. Eu a observava de longe, pois tinha medo dela. De vez em quando ela soltava uns golpes com os pés e acabava chutando uma caixa de correio ou uma garrafa. Seus berros, "all men are scum" ("os homens são escória"), me deixavam apavorado.
Mas isso foi na década de 80. Hoje, ela vende seus serviços de "louca de aluguel" para quem quiser. Há dias em que ela berra para anunciar qualquer outra causa, uma loja, um show de rock. Seja qual for seu patrocinador do momento, sua marca registrada continua sendo os dois dedos que enfia na garganta, simulando o vômito.
A diferença entre ela e o ex-hippie da praça da Sé? Ela pertence a uma sociedade que gosta da performance e faz de qualquer excentricidade um business. Por mais agressiva e repugnante que tente ser, o Primeiro Mundo lhe concedeu o direito de existir para atacar, berrar, vomitar e fazer disso um motivo de orgulho pessoal.
Ele, no marco zero do Terceiro Mundo, não teve a mesma sorte e nada mais é que a ferrugem de um modernismo em ruínas, rejeitado e reduzido àquela praça onde sua identidade ou loucura acaba se confundindo com a pobreza dos desabrigados.
As semelhanças entre eles? Ambos estrelam o show triste do fracasso. Ambos são comandados pelo estresse; esse mesmo estresse que já foi síndrome, já foi doença, já foi comportamento e acabou virando estética.
Os nova-iorquinos, por não terem que se provar ao mundo, exaltam as imperfeições daqueles que não se incluem no jogo rígido e imbecil da sociedade e seus costumes.
Os paulistas, por tentarem ser o que não são, ou por quererem perseguir um modelo falso e importado de comportamento, reprimem essas mesmas virtudes.
Mas o estresse e o vômito são símbolos antigos, reações estilizadas do mundo que se reconhece moderno. Desde Monty Python, com suas cenas recorrentes de vomitadas célebres, até o movimento punk, que tinha em Johnny Rotten e Sid Vicious seus vomitadores "oficiais", ou a realeza decadente das peças de Alan Bennet, os ingleses são mestres nessa arte de representação escatológica.
Claro, os americanos também não ficam muito atrás, com os Simpsons e Beavis and Butt-Head, mas a arte da escatologia que está nas ruas de Nova York já é marca registrada da vanguarda inglesa há muito tempo.
Foi por isso que o "prime time", o horário nobre da TV americana, teve um choque nesta semana. No desespero de achar algo que substitua o sucesso de Seinfeld, a NBC importou da Inglaterra o cartoon "Stressed Eric", que parece ter provocado a classe média deste país de uma forma violenta.
"Stressed Eric" zomba daqueles que deram certo. Mais do que focalizar a vida interior de uma família de desajustados, como fazem os Simpsons, "Stressed Eric" parece ser a Rê Bordosa, do Angeli, comentando a sociedade à sua volta.
Vômitos, peidos, atropelamentos de velhinhas, tortura de crianças, overdose de álcool e drogas, muitos bueiros e uma ênfase extraordinária em esgotos dão a "Stressed Eric" uma margem de comentário e crítica do falso perfeccionismo da sociedade tecnológica e metódica, que nenhum de seus precedentes teve de forma tão nítida, cáustica e chocante.
"Stressed Eric" é medíocre como desenho. Não foi tão fundo em sua estética quanto em sua crença comportamental. Ao mesmo tempo, ele abrange uma audiência que não tem parâmetros para medir seu grau de inovação ou ousadia e limita-se a rir, repugnada no reflexo de sua própria imagem.
"Stressed Eric" podia ser o irmão da mulher que berra e simula o vômito na rua 8. Podia ser, também, um primo distante do nosso louco da praça da Sé, que ainda não aprendeu a simular ou representar nada fora do realismo de sua condição.
Mas, em essência, eles têm tudo em comum, como a falência própria e a morte gradual dos valores morais dentro dos quais cresceram. A mulher da rua 8 faz disso uma profissão e ganha bastante dinheiro com os urros de sua insatisfação.
"Stressed Eric" foi vendido por milhões de dólares e deverá se estabelecer no showbiz americano como um sucesso mediano. E o ex-hippie da praça da Sé? Nada, além de uns trocados e a lembrança de uma modesta homenagem aos pracinhas que tombaram nessas últimas décadas, em busca de um pouco de verdade.

E-Mail: geraldthomas@uol.com.br



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