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FORNADA DO MILÊNIO
Estrelas do fracasso zombam de quem deu certo
GERALD THOMAS
de Nova York
"Um real! Somente um real!
Você vai me dar um real e vai
ser a-g-o-r-a!", gesticulava freneticamente um bêbado, um
louco, um mendigo, um gênio
da praça da Sé.
Fiquei meio sem fala. Ele parecia, na verdade, um ex-hippie, um mártir da contracultura, um sobrevivente dos anos
60. Com seus gestos e sua roupa, podia estar num palco fazendo o papel de bobo da corte
de uma das peças de Shakespeare, ou de um dos vagabundos de Beckett.
Mas estava ali na praça da
Sé, enlouquecendo, apodrecendo aos poucos. Dei-lhe uma
nota de R$ 5 que encontrei no
bolso. Ele tomou a nota em
suas mãos imundas e parou de
gesticular, parou de tremer, e ,
sem dizer uma única palavra,
colocou-se a andar.
Ainda o acompanhei por alguns segundos e o vi encostar
numa árvore, curvar seu corpo
e vomitar. Depois, voltou ao
normal, andou mais um pouco
e foi se sentar num banco com
outros mendigos, loucos, bêbados. Imóvel e "no mundo da
lua", ele parecia sair de um desenho de Crumb, Henfil, Wolinski ou Angeli, sentado naquele banco, cercado por pivetes que o provocavam, corriam
e riam dele.
Dias mais tarde, encontro na
esquina da rua 8 com a Broadway, no Village, uma mulher
doida, estranha, que observo
há anos, literalmente, há duas
décadas. Ela já foi militante de
um grupo que advogava contra a indústria pornográfica
sadomasoquista. Na sua frente
havia sempre uma mesinha
improvisada, com fotos de mulheres amordaçadas, amarradas e cortadas.
Ela berrava, gesticulava e,
volta e meia, metia dois dedos
na garganta como se fosse vomitar. Eu a observava de longe, pois tinha medo dela. De
vez em quando ela soltava uns
golpes com os pés e acabava
chutando uma caixa de correio ou uma garrafa. Seus berros, "all men are scum" ("os
homens são escória"), me deixavam apavorado.
Mas isso foi na década de 80.
Hoje, ela vende seus serviços
de "louca de aluguel" para
quem quiser. Há dias em que
ela berra para anunciar qualquer outra causa, uma loja,
um show de rock. Seja qual for
seu patrocinador do momento,
sua marca registrada continua
sendo os dois dedos que enfia
na garganta, simulando o vômito.
A diferença entre ela e o
ex-hippie da praça da Sé? Ela
pertence a uma sociedade que
gosta da performance e faz de
qualquer excentricidade um
business. Por mais agressiva e
repugnante que tente ser, o
Primeiro Mundo lhe concedeu
o direito de existir para atacar,
berrar, vomitar e fazer disso
um motivo de orgulho pessoal.
Ele, no marco zero do Terceiro Mundo, não teve a mesma
sorte e nada mais é que a ferrugem de um modernismo em
ruínas, rejeitado e reduzido
àquela praça onde sua identidade ou loucura acaba se confundindo com a pobreza dos
desabrigados.
As semelhanças entre eles?
Ambos estrelam o show triste
do fracasso. Ambos são comandados pelo estresse; esse
mesmo estresse que já foi síndrome, já foi doença, já foi
comportamento e acabou virando estética.
Os nova-iorquinos, por não
terem que se provar ao mundo,
exaltam as imperfeições daqueles que não se incluem no
jogo rígido e imbecil da sociedade e seus costumes.
Os paulistas, por tentarem
ser o que não são, ou por quererem perseguir um modelo
falso e importado de comportamento, reprimem essas mesmas virtudes.
Mas o estresse e o vômito são
símbolos antigos, reações estilizadas do mundo que se reconhece moderno. Desde Monty
Python, com suas cenas recorrentes de vomitadas célebres,
até o movimento punk, que tinha em Johnny Rotten e Sid
Vicious seus vomitadores "oficiais", ou a realeza decadente
das peças de Alan Bennet, os
ingleses são mestres nessa arte
de representação escatológica.
Claro, os americanos também não ficam muito atrás,
com os Simpsons e Beavis and
Butt-Head, mas a arte da escatologia que está nas ruas de
Nova York já é marca registrada da vanguarda inglesa há
muito tempo.
Foi por isso que o "prime time", o horário nobre da TV
americana, teve um choque
nesta semana. No desespero de
achar algo que substitua o sucesso de Seinfeld, a NBC importou da Inglaterra o cartoon
"Stressed Eric", que parece ter
provocado a classe média deste
país de uma forma violenta.
"Stressed Eric" zomba daqueles que deram certo. Mais
do que focalizar a vida interior de uma família de desajustados, como fazem os Simpsons, "Stressed Eric" parece ser
a Rê Bordosa, do Angeli, comentando a sociedade à sua
volta.
Vômitos, peidos, atropelamentos de velhinhas, tortura
de crianças, overdose de álcool
e drogas, muitos bueiros e uma
ênfase extraordinária em esgotos dão a "Stressed Eric"
uma margem de comentário e
crítica do falso perfeccionismo
da sociedade tecnológica e metódica, que nenhum de seus
precedentes teve de forma tão
nítida, cáustica e chocante.
"Stressed Eric" é medíocre
como desenho. Não foi tão
fundo em sua estética quanto
em sua crença comportamental. Ao mesmo tempo, ele
abrange uma audiência que
não tem parâmetros para medir seu grau de inovação ou
ousadia e limita-se a rir, repugnada no reflexo de sua própria imagem.
"Stressed Eric" podia ser o irmão da mulher que berra e simula o vômito na rua 8. Podia
ser, também, um primo distante do nosso louco da praça da
Sé, que ainda não aprendeu a
simular ou representar nada
fora do realismo de sua condição.
Mas, em essência, eles têm
tudo em comum, como a falência própria e a morte gradual
dos valores morais dentro dos
quais cresceram. A mulher da
rua 8 faz disso uma profissão e
ganha bastante dinheiro com
os urros de sua insatisfação.
"Stressed Eric" foi vendido
por milhões de dólares e deverá se estabelecer no showbiz
americano como um sucesso
mediano. E o ex-hippie da praça da Sé? Nada, além de uns
trocados e a lembrança de
uma modesta homenagem aos
pracinhas que tombaram nessas últimas décadas, em busca
de um pouco de verdade.
E-Mail: geraldthomas@uol.com.br
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