São Paulo, Sábado, 14 de Agosto de 1999
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RESENHA DA SEMANA
Cegos e extasiados

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

O escritor argentino Ricardo Piglia tem a teoria de que todo conto sempre conta duas histórias. No conto clássico (Edgar Allan Poe etc.), uma história visível esconderia uma outra, secreta, que é revelada ao final.
No conto moderno (Tchecov, Joyce etc.), as duas histórias passariam a ser contadas como uma só: não haveria mais a revelação final, a história secreta passaria a ser o não dito.
A tese cai como uma luva em "Aula de Canto e Outros Contos", de Katherine Mansfield (1888-1923), quinto volume da obra ficcional da escritora neozelandesa publicado pela editora Revan -depois das coletâneas "Felicidade", "A Festa" e "Je Ne Parle Pas Français" e "Numa Pensão Alemã", e de uma seleção do "Diário e Cartas". Contra essa edição, no entanto, depõem os erros crassos de revisão, como halteres sem "h", já no primeiro parágrafo do conto que dá título à coletânea, ou "dispreocupadamente", entre outros.
Grande parte desses contos parece pedir uma apreensão sensorial do leitor, como se tentassem provocar a compreensão mais por sensações análogas às que sofrem os personagens do que por uma razão narrativa que lhes seja exterior.
Katherine Mansfield procurava atingir uma verdade quase mágica por meio da criação literária, algo que a redimisse do sofrimento da doença e da permanente proximidade da morte -morreu tuberculosa, aos 34 anos, passando frio e fazendo meditação sob orientação do guru Gurdjieff nos arredores de Paris.
"É tão estranho trazer os mortos de novo à vida! (...) Eu me apago para que vocês possam viver novamente, através de mim. (...) A gente precisa praticar o esquecer de si mesmo. Não posso dizer a verdade sobre tia Anne, a menos que esteja livre para entrar na vida dela, sem constrangimento", escreveu no diário em 1921.
"Devo parar com esta carta e continuar a escrever meu novo conto. Chama-se "At the Bay" e está (eu espero) cheio de areia e algas marinhas, roupas de banho penduradas nas varandas e sapatos de praia nos peitoris das janelas, (...) e a maré chegando. E cheira (oh, eu espero que cheire) um tantinho a peixe", escreveu a Dorothy Brett, no mesmo ano.
Fã incondicional e herdeira de Tchecov, admiradora de Joyce, invejada por Virginia Woolf, amiga de D.H. Lawrence (que se inspirou nela para criar o personagem de Gudrun em "Mulheres Apaixonadas"), frágil, atormentada e moderna não só na literatura mas em seu comportamento sexual e amoroso, nutrindo a maior das aversões por uma escrita chorosa e sentimental, Katherine Mansfield inventou a sua própria forma de conto.
"Acredito que tenha chegado a hora do "novo discurso", mas imagino que este não venha a ser falado facilmente. As pessoas nunca exploram o encantador mundo da prosa. É um país oculto -e eu o sinto tão profundamente! (...) A arte não é uma tentativa do artista de reconciliar a existência com a sua visão. É uma tentativa de criar seu próprio mundo neste mundo" ("Diário e Cartas").
Ou seja: um conto em que o que conta não é mais a trama romanesca, mas o instante e as sensações menores, mais intensas e menos afeitas às verbalizações. Uma espécie de fabulação romanesca mínima e instantânea.
"(...) Engoli um homem tão estúpido, junto com meu chá, que não consigo digeri-lo. Ele está querendo publicar uma antologia de contos e disse que quanto mais bem "tramada" fosse a história que eu lhe desse, melhor. Quanta coisa, numa palavra! Foi algo que me arrepiou os cabelos. Uma história bem tramada, por favor! As pessoas são engraçadas" (carta a Dorothy Brett).
Apesar dessa tentativa de fazer do conto o brilho de um instante, de se livrar do narrador e da intriga para fazer surgir os personagens "por mínimas sensações", numa centelha, sem ter de "contá-los", é difícil não ver que esses lampejos continuam funcionando como revelações.
Em alguns dos textos da autora, como a obra-prima "Felicidade" e "Um Pepino em Conserva", incluído na coletânea "Aula de Canto", a revelação é proporcional à cegueira dos personagens. Ela é um tipo de êxtase.
O conto é construído como uma fotografia familiar (à exemplo do que faz hoje a fotógrafa americana Tina Barney), só que desfocada, ou melhor, à procura de um foco. A indefinição do foco é consequência da própria fragilidade de percepção dos personagens, às vésperas de enxergar, por um segundo que seja, a verdade mais desestabilizadora.
O conto inteiro torna-se, assim, um ajuste de lentes, até a definição de um detalhe que, mesmo quando desencadeando uma decepção, é traduzido num pequeno êxtase, pelo contraponto de sua revelação e da súbita consciência da cegueira dos personagens.


Avaliação:    


Livro: Aula de Canto e Outros Contos Autor: Katherine Mansfield Tradução: Julieta Cupertino Lançamento: Editora Revan Quanto: R$ 24 (238 págs.)


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