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RESENHA DA SEMANA
Cegos e extasiados
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
O escritor argentino Ricardo
Piglia tem a teoria de que todo
conto sempre conta duas histórias. No conto clássico (Edgar
Allan Poe etc.), uma história visível esconderia uma outra, secreta, que é revelada ao final.
No conto moderno (Tchecov, Joyce etc.), as duas histórias passariam a ser contadas
como uma só: não haveria mais
a revelação final, a história secreta passaria a ser o não dito.
A tese cai como uma luva em
"Aula de Canto e Outros Contos", de Katherine Mansfield
(1888-1923), quinto volume da
obra ficcional da escritora neozelandesa publicado pela editora Revan -depois das coletâneas "Felicidade", "A Festa" e
"Je Ne Parle Pas Français" e
"Numa Pensão Alemã", e de
uma seleção do "Diário e Cartas". Contra essa edição, no entanto, depõem os erros crassos
de revisão, como halteres sem
"h", já no primeiro parágrafo
do conto que dá título à coletânea, ou "dispreocupadamente", entre outros.
Grande parte desses contos
parece pedir uma apreensão
sensorial do leitor, como se
tentassem provocar a compreensão mais por sensações
análogas às que sofrem os personagens do que por uma razão narrativa que lhes seja exterior.
Katherine Mansfield procurava atingir uma verdade quase
mágica por meio da criação literária, algo que a redimisse do
sofrimento da doença e da permanente proximidade da morte -morreu tuberculosa, aos
34 anos, passando frio e fazendo meditação sob orientação
do guru Gurdjieff nos arredores de Paris.
"É tão estranho trazer os
mortos de novo à vida! (...) Eu
me apago para que vocês possam viver novamente, através
de mim. (...) A gente precisa
praticar o esquecer de si mesmo. Não posso dizer a verdade
sobre tia Anne, a menos que esteja livre para entrar na vida dela, sem constrangimento", escreveu no diário em 1921.
"Devo parar com esta carta e
continuar a escrever meu novo
conto. Chama-se "At the Bay" e
está (eu espero) cheio de areia e
algas marinhas, roupas de banho penduradas nas varandas
e sapatos de praia nos peitoris
das janelas, (...) e a maré chegando. E cheira (oh, eu espero
que cheire) um tantinho a peixe", escreveu a Dorothy Brett,
no mesmo ano.
Fã incondicional e herdeira
de Tchecov, admiradora de
Joyce, invejada por Virginia
Woolf, amiga de D.H. Lawrence (que se inspirou nela para
criar o personagem de Gudrun
em "Mulheres Apaixonadas"),
frágil, atormentada e moderna
não só na literatura mas em seu
comportamento sexual e amoroso, nutrindo a maior das
aversões por uma escrita chorosa e sentimental, Katherine
Mansfield inventou a sua própria forma de conto.
"Acredito que tenha chegado
a hora do "novo discurso", mas
imagino que este não venha a
ser falado facilmente. As pessoas nunca exploram o encantador mundo da prosa. É um
país oculto -e eu o sinto tão
profundamente! (...) A arte não
é uma tentativa do artista de reconciliar a existência com a sua
visão. É uma tentativa de criar
seu próprio mundo neste mundo" ("Diário e Cartas").
Ou seja: um conto em que o
que conta não é mais a trama
romanesca, mas o instante e as
sensações menores, mais intensas e menos afeitas às verbalizações. Uma espécie de fabulação romanesca mínima e instantânea.
"(...) Engoli um homem tão
estúpido, junto com meu chá,
que não consigo digeri-lo. Ele
está querendo publicar uma
antologia de contos e disse que
quanto mais bem "tramada"
fosse a história que eu lhe desse, melhor. Quanta coisa, numa palavra! Foi algo que me arrepiou os cabelos. Uma história
bem tramada, por favor! As
pessoas são engraçadas" (carta
a Dorothy Brett).
Apesar dessa tentativa de fazer do conto o brilho de um
instante, de se livrar do narrador e da intriga para fazer surgir os personagens "por mínimas sensações", numa centelha, sem ter de "contá-los", é
difícil não ver que esses lampejos continuam funcionando
como revelações.
Em alguns dos textos da autora, como a obra-prima "Felicidade" e "Um Pepino em
Conserva", incluído na coletânea "Aula de Canto", a revelação é proporcional à cegueira
dos personagens. Ela é um tipo
de êxtase.
O conto é construído como
uma fotografia familiar (à
exemplo do que faz hoje a fotógrafa americana Tina Barney),
só que desfocada, ou melhor, à
procura de um foco. A indefinição do foco é consequência
da própria fragilidade de percepção dos personagens, às
vésperas de enxergar, por um
segundo que seja, a verdade
mais desestabilizadora.
O conto inteiro torna-se, assim, um ajuste de lentes, até a
definição de um detalhe que,
mesmo quando desencadeando uma decepção, é traduzido
num pequeno êxtase, pelo contraponto de sua revelação e da
súbita consciência da cegueira
dos personagens.
Avaliação:
Livro: Aula de Canto e Outros Contos
Autor: Katherine Mansfield
Tradução: Julieta Cupertino
Lançamento: Editora Revan
Quanto: R$ 24 (238 págs.)
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