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"POESIA TRADUZIDA"
Henriqueta Lisboa combina o coloquial e o rebuscado
NELSON ASCHER
ARTICULISTA DA FOLHA
Não é todo dia que, do passado, um livro surpreendente
chega para ficar. É mais provável,
porém, que isso aconteça no Brasil, onde a timidez crítica nunca
deu efetivamente conta da riqueza criativa, do que em outros países menos desleixados. E tal é o
caso da coletânea de "Poesia Traduzida" da mineira Henriqueta
Lisboa (1901- 1985).
Enquanto poeta, Henriqueta é
dessas vozes cuja delicadeza contribuiu para que não fossem ouvidas como deviam. Sua combinação peculiar de sensibilidade simbolista e técnica modernista ajudou certamente a afastar de seu
trabalho tanto os leitores que buscavam um modernismo mais explícito quanto aqueles que se sentiam à vontade com um simbolismo de aspecto mais tradicional.
Se há algo que lhe singulariza a
poesia, é sua capacidade de, num
texto coloquial e vazado em formas livres, não só entremear palavras e expressões raras ou rebuscadas, mas de fazê-lo de modo tão
sutil e apropriado que estas em
nada perturbam o desdobrar elegantemente sinuoso do fraseado.
Embora sua obra ainda aguarde
uma reavaliação que lhe faça jus,
graças ao trabalho exemplar dos
organizadores, que prova que as
universidades (no caso, a UFMG)
podem se tornar literariamente
relevantes quando querem, suas
traduções estão agora reunidas, à
disposição dos leitores, através do
cotejo entre originais e versões, a
descobrir a riqueza de recursos
que a poeta levava aos poemas, os
seus ou os alheios.
Com exceção de alguns poucos
poemas traduzidos do inglês e do
alemão, os originais deste volume
são italianos e espanhóis. Seus
pontos altos são três sonetos e 14
cantos do "Purgatório", de Dante
Alighieri, bem como uma seleção
de textos de dois poetas da Itália
moderna: Giuseppe Ungaretti e
Cesare Pavese.
Ungaretti é um poeta que impõe
a seus tradutores dificuldades
quase intransponíveis, pois devido à exiguidade exata e exigente
de seus poemas, basta uma palavra mal calculada para que a tradução se despenhe numa banalidade sem fundo. E é sua própria
combinação de coloquialidade e
rebuscamento que, nesse caso,
permitiu à mineira desempenhar
a tarefa.
Nem por isso falta talento ao seu
trabalho com os espanhóis e hispano-americanos, como Lope de
Vega e Gabriela Mistral. Português e espanhol são duas língua
tão próximas entre si (enganadoramente próximas, de fato), que
transpor obras literárias de uma
para a outra, quando não supérfluo, parece fácil. Só que não é.
Ambas as línguas se relacionam
como falsos cognatos e, quando
se trata de verter, por exemplo,
um soneto, chega-se frequentemente à situação em que três das
quatro rimas dos quartetos são as
mesmas, mas a quarta é impossivelmente diferente. Assim, embora no soneto de Lope não haja como fugir às rimas em "eto" ("soneto", "quarteto" e "terceto"), seu
segundo verso diz: "Que en mi vida me he visto en tanto aprieto"
(nunca na vida me vi em tamanho
aperto). O que fazer com isso? A
solução de Henriqueta: "E de
apertado vejo tudo preto". Ótima.
Não são poucos, portanto, os
prazeres que se oferecem nessas
páginas. Com sorte, eles incentivarão outros críticos e pesquisadores a reunirem e republicarem
as traduções, hoje em dia esquecidas ou perdidas, dos demais poetas modernistas: o Tardieu ou o
Brecht de Bandeira, o Molière de
Drummond, e o Calderon de la
Barca de João Cabral.
POESIA TRADUZIDA - coletânea de
Henriqueta Lisboa. Editora: UFMG.
Quanto: R$ 37 (487 págs.).
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