|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"O DIÁRIO DE ANTÔNIO MARIA"
Compositor relata anos dourados
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Ano de 1957. O Brasil, especialmente o Rio de Janeiro,
vivia o que se convencionou chamar de seus anos dourados. Era
também o auge do sucesso do
compositor e cronista carioca Antônio Maria. Famoso por suas
canções como "Ninguém me
Ama", tinha duas colunas em "O
Globo", escrevia esquetes de humor para a rádio Mayrink Veiga,
gravava discos, fazia livros. Mas,
para usar outra expressão de época, estava sempre na "fossa".
Essa é a sensação que temos ao
ler as páginas inéditas de seu diário, escrito durante 39 dias, entre
março e abril daquele ano. São
dois cadernos escolares de 145 páginas cada, em que registrou suas
dúvidas, brigas, bebedeiras, farras, lamúrias. Diz ele: "Hoje em
dia é preciso viver-se dopado".
Além das incontáveis doses de
uísque e vodca, Maria se entupia
de comprimidos de Dexedrina.
Bebia-se muito. Rubem Braga
("a amizade que mais prezo")
surge quase sempre embriagado,
assim como Paulo Mendes Campos. Boêmios, encontravam-se no
Sacha's, a boate da moda, às vezes
no Golden Room do Copacabana
Palace. Maria descreve assim a
turminha formada por deputados
da UDN, uma envelhecida Lana
Turner, Jorginho Guinle (que
alardeia ter dormido com a atriz),
Anita Ekberg ("uma enfermeiraça. Mesmo assim bela"): "Gente
boba e vazia. Vaidosos, frívolos,
ricos. Gosto, porém, de conhecê-los cada vez mais, para ver até onde chega sua organizadíssima miséria humana".
Noutra noite, no Sacha's, encontra Di Cavalcanti. O pintor
voltava de uma "suruba" organizada por Oscar Niemeyer "aos arquitetos que vieram, da Europa,
julgar o plano urbanístico de Brasília". Di contou dez mulheres
nuas. Mulheres eram motivo para
desavença. Vinicius, enciumado,
uma vez chamou Maria para a
briga. O cronista ficou magoado.
Arrependido, o poeta escreve de
Paris, buscando as pazes.
O escritor é cruel consigo mesmo. Descreve-se como "um senhor gordo, casado, pai e emocionável". Seus humorísticos não o
convencem: "Não me acho engraçado". Páginas depois, decide que
é um "cronista frívolo", "pertencente à pior safra do jornalismo
brasileiro". Vive atolado em dívidas. Para consertar as finanças,
grava um LP com suas músicas.
Prepara um livro de crônicas que
oferece a José Olympio. O editor
propõe um adiantamento mísero,
pouco mais da metade do preço
de uma vitrola. Revolta: "José
Olympio é um homem rico, gastador, joga fortunas nas corridas e
no "poker", à custa dos escritores.
[...] Não irá editar meu livro".
Na mesma noite em que jura
economizar, termina no Sacha's.
A casa noturna é seu porto (in)seguro. Relata ter dormido à sua
porta, no canteiro, até as seis da
matina. "Devo morrer cedo, de
repente, por causa dos meus exageros", prenuncia o homem que
seria fulminado por um ataque
cardíaco ao 43 anos, em 1964.
São páginas trôpegas, sem rumo, mas cheias de vida e emoção.
Maria procura "não escrever bonito", ou seja, com olhar num leitor hipotético, embora nem sempre consiga. Trata o diário como a
um amante. Corteja-o ("somos
cada vez mais íntimos"), desnuda-se ("isto aqui é minha vida [...]
o que acontece dentro de mim"),
apaixona-se ("em horas assim,
me apaixono de ti, ó intimo amigo"). Foi uma relação fugaz. Acabou como começou, de inopino.
Em seu brilho passageiro, porém,
vislumbramos o lusco-fusco de
uma era mais crepuscular que
dourada, os últimos raios antes de
um impendente anoitecer.
O Diário de Antônio Maria
Autor: Antônio Maria
Editora: Record
Quanto: R$ 20 (112 págs.)
Texto Anterior: Livros/Lançamentos - "Seus Olhos Viam Deus": Zora Hurston pinta contrastes negros nos EUA dos anos 30 Próximo Texto: "Crítica da Razão Impura ou o Primado da Ignorância": Millôr se diverte criticando Sarney e FHC Índice
|