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São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2003

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Em "Budapeste", seu terceiro romance, o cantor e compositor mergulha em uma "literatura paralela', a dos escritores anônimos, ao descrever o universo de um "ghost-writer" atormentado

Outro Chico

MARCELO RUBENS PAIVA
ARTICULISTA DA FOLHA

Chico Buarque, 59, resolve atender a amigos que mencionavam que sua obra literária contrastava com seu bom humor.
Em seu novo romance, "Budapeste", que chega agora às livrarias, a ironia está no foco, como se a narrativa tivesse a caneta de Julinho da Adelaide, pseudônimo que Chico usou para ridicularizar as incongruências do passado.
Se em "Estorvo" (91) o narrador era atormentado pela solidão, e "Benjamim" (95), cujo filme dirigido por Monique Gardenberg está para estrear no Brasil -foi visto no Festival de Sundance-, abre com um pelotão de fuzilamento, prepare-se para rir em "Budapeste", cidade em que o autor nunca colocou os pés.
Chico troca as angústias de um narrador difuso pela auto-ironia e toca em tema que incomoda escritores: o envolvimento entre biógrafos e biografados, livros sob encomenda e anonimato. Curiosamente, Chico viveu algo semelhante. Encontrou, pelo consulado da Hungria, uma professora de húngaro. Ao ligar para uma consulta, escutou: "Chico Buarque... Só tem um, aquele compositor".
Ele foi ao encontro sem esclarecer que ele era o compositor. Chico mergulha no ofício como poucos: inventa. Apesar de nunca ter ido à Hungria, escreve: "Em toda a orla do Rio, não há mulher que caminhe como as húngaras".
E, diferentemente dos anteriores, que foram escritos em um ano, Chico gastou o dobro do tempo, depois de experimentar um bloqueio. Seu plano inicial era narrar a vida de um arquiteto. O livro é narrado por um escritor, José Costa, casado com uma apresentadora de telejornal e explora os tormentos de biógrafos e autores anônimos. Ele publica artigos para o presidente da Federação das Indústrias, o ministro do Supremo ou o cardeal arcebispo. Seu nome não aparece. Costa é o sobrenome do "ghost-writer" do ex-presidente Médici, general Otávio Costa. Coincidência?
O narrador é um gênio não-reconhecido. Namora seus artigos solitariamente e considera a mulher uma papagaia, porque lê as notícias sem saber do que fala (seu oposto). As diferenças: enquanto Costa atende clientes em busca de textos anônimos, a mulher sobe na carreira, muda-se para São Paulo e vira uma estrela.
Ele encontra estímulo numa das coisas mais extravagantes, uma língua de consonâncias, tremas e inútil: o húngaro, "única língua do mundo que o diabo respeita".
Volta a Budapeste, que conheceu casualmente num pouso forçado, só para aprender a língua e dar um tempo da mulher. Claro, envolve-se com a professora, que o fazia passar sede porque ele falava água sem acertar a prosódia.
É o humor, o humor...



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