São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2003 |
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Autor cruza abismo e chega ao outro lado
JOSÉ SARAMAGO
Haverá universos paralelos?
Perante as variadas "provas" apresentadas ao tribunal da
opinião pública pelos autores que
se dedicam à ficção científica, não
é difícil acreditar que sim, ou, pelo
menos, estar de acordo em conceder à temerária hipótese aquilo
que não se nega a ninguém, isto é,
o benefício da dúvida. Ora, supondo que realmente existam esses tais universos paralelos, será
lógico e creio que inevitável ter de
admitir igualmente a existência
de literaturas paralelas, de escritores paralelos, de livros paralelos.
Um espírito sarcástico não deixaria de recordar-nos que não se necessita ir tão longe para encontrar
escritores paralelos, mais conhecidos por plagiários, os quais, no
entanto, nunca chegam a ser plagiários de todo porque alguma
coisa da lavra própria se sentem
na obrigação de pôr na obra que
assinarão com o seu nome. Plagiário absoluto foi
aquele Pierre Menard
que, no dizer de Borges,
copiou o "Quixote" palavra por palavra, e
mesmo assim o mesmo
Borges nos advertiu
que escrever o termo
"justiça" no século 20
não significa a mesma
coisa (nem é a mesma
"justiça") que tê-la escrito no século 17... Outro tipo de escritor paralelo (também chamado "nègre" ou, mais
modernamente,
"ghost") é aquele que
escreve para que outros gozem a
suposta ou autêntica glória de ver
o seu nome escrito na capa de um
livro. Disso trata, aparentemente,
o último romance de Chico Buarque de Holanda, e se digo "aparentemente" é porque o escritor
"fantasma" cujas grotescas aventuras vamos acompanhando divertidos, se bem que ao mesmo
tempo apiedados, é tão somente a
causa inconsciente de um processo de repetições sucessivas que, se
não chegam a ser de universos
nem de literaturas, sem dúvida o
serão, inquietantemente, de autores e de livros. O mais desassossegador, porém, é a sensação de vertigem contínua que se apoderará
do leitor, que em cada momento
saberá onde "estava", mas que em
cada momento não sabe onde
"está". Sem parecer pretendê-lo,
cada página do romance expressa
uma interpelação "filosófica" e
uma provocação "ontológica":
que é, afinal, a realidade? O que e
quem sou eu, afinal, nisso que me
ensinaram a chamar realidade?
Um livro existe, deixará de existir,
existirá outra vez. Uma pessoa escreveu, outra assinou, se o livro
desapareceu, também desapareceram ambas? E se desapareceram, desapareceram de todo ou
em parte? Se alguém sobreviveu,
sobreviveu neste ou noutro universo? Quem serei eu, se tendo sobrevivido não sou já quem era?
Chico Buarque ousou muito, escreveu cruzando um abismo sobre um arame e chegou ao outro
lado. Ao lado onde se encontram
os trabalhos executados com
mestria, a da linguagem, a da
construção narrativa, a do simples fazer. Não creio enganar-me
dizendo que algo novo aconteceu
no Brasil com este livro. José Saramago, 80, Nobel de Literatura em 1998, é autor de "Ensaio sobre a Cegueira" e "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", entre outros, e lançou, com Chico Buarque e o fotógrafo Sebastião Salgado, o pacote de livro e disco "Terra" (1997) Texto Anterior: Outro Chico Próximo Texto: Chico tem uma história e sabe como contá-la Índice |
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