São Paulo, terça-feira, 14 de setembro de 2004

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BERNARDO CARVALHO

Será arte?

É comum ouvir (e não só da boca dos conservadores) que, a par do que se passa em outros campos, já não existem valores que dêem conta das artes. Os critérios de julgamento se desbarataram. O que haveria é uma espécie de vale-tudo. A crítica, no mais das vezes incapaz, viveria diante do caos.
Basta, no entanto, ler um livro recém-publicado no Brasil ("Objeto Ansioso", Cosac & Naify), reunindo textos escritos há mais de 40 anos pelo crítico americano Harold Rosenberg (1906-1978), para entender o quanto há de cortina de fumaça nesse discurso. O mesmo "caos" já era assunto nos anos 60, e na época o autor já defendia um ponto de vista bem mais lúcido do que o de muita gente hoje.
A seguir as idéias de Rosenberg, não é absurdo concluir que há inércia ou oportunismo em quem diz que já não é possível distinguir o que é arte do que não é. Rosenberg é daqueles que acreditam numa arte reflexiva. Para ele, onde não há reflexão sobre o papel da arte também não pode haver arte. A reflexão produz ansiedade: "Onde essa ansiedade está ausente, nada que aconteça ao artista como pessoa, nem mesmo a ameaça de sua extinção, poderá fazer a arte vir a existir".
Reflexão e ansiedade são resultado do mal-estar provocado por uma prática em permanente crise e instabilidade, questionada e questionável. A partir do momento em que ela passa a ser aceita e a dispensar justificativas, como qualquer profissão estabelecida, a partir do momento em que ela se torna funcional, ela deixa de ser arte.
O que importa é menos o objeto final do que a problemática e as questões levantadas pela sua criação. "Arte é essencialmente criação. Qualquer coisa pode ser uma obra de arte, mas o modo de produzi-la é que decide seu significado e seu valor."
Não foi por acaso que Rosenberg cunhou o termo "action painting" (pintura de ação) e se tornou um dos maiores entusiastas das pinturas de Pollock e de De Kooning. Nem é por acaso que num dos ensaios do livro, justamente sobre a "action painting", ele se sirva de uma citação de Kierkegaard como epígrafe: "Na Grécia, filosofar era um modo de agir". A arte para ele não é apenas forma, muito menos ilustração de idéias; é em si um modo reflexivo de ação.
Reflexão, ansiedade, criação e ação têm a ver antes de mais nada com uma consciência histórica por parte do artista. É a consciência da sua realidade em contraponto com a de outros artistas e movimentos históricos que o faz pôr em questão a sua própria criação. Só essa instabilidade permite que ela possa vir a ser arte. Não existe arte estabelecida ou inquestionável no presente. Acatar o que manda a sua época, evitando o questionamento e o debate, também não seria um ato propriamente artístico. Ou é arte ou é inquestionável. Não dá para ser os dois.
É constrangedora, por exemplo, a repetição de formas e modelos já consagrados no passado como pretensos atos de rebeldia, transgressão e inovação. Ao mesmo tempo, o que a moda insiste em definir como ultrapassado pode muitas vezes ser o seu antídoto, uma arma potente contra a estabilidade da moda. O novo, no seu sentido mais complexo, significa uma mudança e uma ampliação da consciência. A arte é uma "atividade pela qual o ator transforma a si mesmo". Não adianta repetir formas e modos de criação de uma mudança de consciência já realizada.
O mesmo pode ser aplicado às letras. Quem escrevesse hoje no Brasil à maneira de Machado de Assis, Guimarães Rosa ou Clarice Lispector certamente não estaria fazendo literatura. Da mesma forma, e para dar um exemplo banalizado e recorrente, de nada adianta arremedar o modo da literatura beat para fazer o que fizeram os escritores e poetas beat nos Estados Unidos dos anos 50/ 60. Para fazer algo análogo ao que eles fizeram (ainda que você possa não considerar a literatura beat uma inovação especialmente extraordinária), seria preciso antes de tudo levá-los em conta e, em conseqüência, escrever de um jeito diferente do deles, um jeito ainda desconhecido.
A graça e o mais terrível desse ponto de vista é que a arte será sempre determinada por uma guerra de idéias, no presente. E o presente nem sempre é formado pelas idéias mais originais e brilhantes. O próprio pensamento de Rosenberg se insere nessa guerra e num momento social, cultural e histórico determinado. Os valores sempre existiram e continuarão a existir. São elementos de um jogo e de um confronto permanentes. Para o bem ou para o mal, eles são recriados e reinterpretados pelo presente. E é o resultado desse jogo que indica a glória ou a mediocridade cultural de uma época.
O artista que se agarra, como a uma bóia de salvação, ao que já foi estabelecido pela história é paradoxalmente aquele que, se furtando à crise, ignora a história. A determinação de novos valores para o que é novo e para o que é arte é conseqüência de um debate que deve envolver críticos e artistas, um debate no qual sempre é possível haver imposturas, em que uma corrente envelhecida ou decadente de pensamento, ou um lugar-comum, pode tentar permanecer como regra ou se impor como vanguarda. A grandeza de uma época está em não permitir que a arte (e a crítica), uma vez confrontada com a ansiedade e a instabilidade que lhe são características, prefira dar meia-volta e recorrer, ainda que inconscientemente, à segurança das coisas já estabelecidas.


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