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BERNARDO CARVALHO
Será arte?
É comum ouvir (e não só da
boca dos conservadores) que,
a par do que se passa em outros
campos, já não existem valores
que dêem conta das artes. Os critérios de julgamento se desbarataram. O que haveria é uma espécie de vale-tudo. A crítica, no
mais das vezes incapaz, viveria
diante do caos.
Basta, no entanto, ler um livro
recém-publicado no Brasil ("Objeto Ansioso", Cosac & Naify),
reunindo textos escritos há mais
de 40 anos pelo crítico americano
Harold Rosenberg (1906-1978),
para entender o quanto há de
cortina de fumaça nesse discurso.
O mesmo "caos" já era assunto
nos anos 60, e na época o autor já
defendia um ponto de vista bem
mais lúcido do que o de muita
gente hoje.
A seguir as idéias de Rosenberg,
não é absurdo concluir que há
inércia ou oportunismo em quem
diz que já não é possível distinguir o que é arte do que não é. Rosenberg é daqueles que acreditam
numa arte reflexiva. Para ele, onde não há reflexão sobre o papel
da arte também não pode haver
arte. A reflexão produz ansiedade: "Onde essa ansiedade está ausente, nada que aconteça ao artista como pessoa, nem mesmo a
ameaça de sua extinção, poderá
fazer a arte vir a existir".
Reflexão e ansiedade são resultado do mal-estar provocado por
uma prática em permanente crise
e instabilidade, questionada e
questionável. A partir do momento em que ela passa a ser
aceita e a dispensar justificativas,
como qualquer profissão estabelecida, a partir do momento em
que ela se torna funcional, ela
deixa de ser arte.
O que importa é menos o objeto
final do que a problemática e as
questões levantadas pela sua
criação. "Arte é essencialmente
criação. Qualquer coisa pode ser
uma obra de arte, mas o modo de
produzi-la é que decide seu significado e seu valor."
Não foi por acaso que Rosenberg cunhou o termo "action
painting" (pintura de ação) e se
tornou um dos maiores entusiastas das pinturas de Pollock e de
De Kooning. Nem é por acaso que
num dos ensaios do livro, justamente sobre a "action painting",
ele se sirva de uma citação de
Kierkegaard como epígrafe: "Na
Grécia, filosofar era um modo de
agir". A arte para ele não é apenas forma, muito menos ilustração de idéias; é em si um modo
reflexivo de ação.
Reflexão, ansiedade, criação e
ação têm a ver antes de mais nada com uma consciência histórica por parte do artista. É a consciência da sua realidade em contraponto com a de outros artistas
e movimentos históricos que o faz
pôr em questão a sua própria
criação. Só essa instabilidade permite que ela possa vir a ser arte.
Não existe arte estabelecida ou
inquestionável no presente. Acatar o que manda a sua época, evitando o questionamento e o debate, também não seria um ato
propriamente artístico. Ou é arte
ou é inquestionável. Não dá para
ser os dois.
É constrangedora, por exemplo,
a repetição de formas e modelos
já consagrados no passado como
pretensos atos de rebeldia, transgressão e inovação. Ao mesmo
tempo, o que a moda insiste em
definir como ultrapassado pode
muitas vezes ser o seu antídoto,
uma arma potente contra a estabilidade da moda. O novo, no seu
sentido mais complexo, significa
uma mudança e uma ampliação
da consciência. A arte é uma "atividade pela qual o ator transforma a si mesmo". Não adianta repetir formas e modos de criação
de uma mudança de consciência
já realizada.
O mesmo pode ser aplicado às
letras. Quem escrevesse hoje no
Brasil à maneira de Machado de
Assis, Guimarães Rosa ou Clarice
Lispector certamente não estaria
fazendo literatura. Da mesma
forma, e para dar um exemplo
banalizado e recorrente, de nada
adianta arremedar o modo da literatura beat para fazer o que fizeram os escritores e poetas beat
nos Estados Unidos dos anos 50/
60. Para fazer algo análogo ao
que eles fizeram (ainda que você
possa não considerar a literatura
beat uma inovação especialmente extraordinária), seria preciso
antes de tudo levá-los em conta e,
em conseqüência, escrever de um
jeito diferente do deles, um jeito
ainda desconhecido.
A graça e o mais terrível desse
ponto de vista é que a arte será
sempre determinada por uma
guerra de idéias, no presente. E o
presente nem sempre é formado
pelas idéias mais originais e brilhantes. O próprio pensamento de
Rosenberg se insere nessa guerra e
num momento social, cultural e
histórico determinado. Os valores
sempre existiram e continuarão a
existir. São elementos de um jogo
e de um confronto permanentes.
Para o bem ou para o mal, eles
são recriados e reinterpretados
pelo presente. E é o resultado desse jogo que indica a glória ou a
mediocridade cultural de uma
época.
O artista que se agarra, como a
uma bóia de salvação, ao que já
foi estabelecido pela história é paradoxalmente aquele que, se furtando à crise, ignora a história. A
determinação de novos valores
para o que é novo e para o que é
arte é conseqüência de um debate
que deve envolver críticos e artistas, um debate no qual sempre é
possível haver imposturas, em
que uma corrente envelhecida ou
decadente de pensamento, ou um
lugar-comum, pode tentar permanecer como regra ou se impor
como vanguarda. A grandeza de
uma época está em não permitir
que a arte (e a crítica), uma vez
confrontada com a ansiedade e a
instabilidade que lhe são características, prefira dar meia-volta e
recorrer, ainda que inconscientemente, à segurança das coisas já
estabelecidas.
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