São Paulo, quinta-feira, 14 de setembro de 2006

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Caçador de mitos

Crítico da Folha dispara contra cinco ícones gastronômicos "intocáveis" de São Paulo, entre eles o descomunal sanduíche de mortadela do Mercadão e o sistema de rodízio das churrascarias

JOSIMAR MELO
CRÍTICO DA FOLHA

Eu adoro ir ao Mercado Municipal. Eu também adoro comer em botecos -como os de lá. Mas odeio filas (como a dos bares do Mercadão), especialmente para comer. E o ódio torna-se fúria quando no final da fila há uma frustração.
No Bar do Mané, a grande maioria das pessoas pedirá um enorme, descomunal, sanduíche de mortadela, que todo mundo se habituou a achar que é um dos melhores do mundo. Que é gigante, é. Quase meio quilo de fatias de mortadela ("pesadas" a olho, no mínimo uns 300 g) mal sobraçadas por duas humilhadas fatiazinhas de pão. Ah, um pouco de alface e tomate também. Mas... será isso um bom sanduíche? Um sanduíche não deveria equilibrar os sabores do pão e de seus recheios? Ou, sendo mais prosaico, não deveria caber na boca, ser capaz de ser mordido? E finalmente: para ser glosado como o melhor do Brasil, não deveria ter alguma arte culinária? Um tempero especial, um ingrediente produzido pela cozinha... e não apenas a mortadela que você pode comprar no supermercado, num pão que você acha na padaria do bairro?
Não vale a fila. E o curioso é que nem o público do Mercadão achava que valesse, na maior parte dos mais de 70 anos do Bar do Mané. O mito desse sanduíche tem uns 15 anos, quando a imprensa começou a incensá-lo. Antes, o Mané vendia bem mais o gostoso sanduíche de pernil -este sim montado em proporções mais adequadas ao perímetro da boca e recheado de arte culinária (o assar do pernil, o fazer do molho). Continua em cartaz, embora soterrado pelos 500 sanduíches de mortadela vendidos em dias de movimento.
Talvez impere a máxima de que tamanho é documento. Daí a monumentalidade deste sanduíche de mortadela e de outro ícone paulistano ali vizinho: o pastel de bacalhau do Hocca Bar. Mais uma vez, um problema de conceito e de sabor. O famoso pastel é uma desfaçatez ergonômica. O recheio é tanto que destrói o delicado equilíbrio que os chineses demoraram séculos para arquitetar nos pastéis. E desequilibra também o sabor. Muito recheio para pouca massa. E um bacalhau que deixa a desejar: seco, salgado... Se você está no Hocca Bar, por que não pedir seus outros pastéis bem melhores? (Uma das especialidades é o de mussarela de búfala com tomate seco.) Ou então o suculento sanduíche de calabresa da casa?

Camada pegajosa
Entre as outras modas da cidade que introduzem ingredientes inadequados no lugar errado está a do requeijão Catupiry. Adoro. Admiro sua pungência, sua cremosidade. Seu ponto de sal faz dele o acompanhamento ideal para compotas brasileiras, que são ricas em açúcar (de goiaba, de jaca, de banana). Agora: pizza de Catupiry? (E ainda feita com requeijões inferiores, por sinal.) Não dá. Carne gratinada com Catupiry? Livrai-me. O problema não está no ingrediente, mas na combinação que se faz com ele. Enquanto a mussarela sobre a pizza tem aquele toque divertido de elasticidade, o requeijão, pelo contrário, tende a ficar pastoso. Vira uma camada pegajosa que sufoca os demais ingredientes. Mas Catupiry é especial, Catupiry é caro; vai convencer alguém de que não é chique. Fico feliz pela celebridade alcançada pelo bravo requeijão, nascido de um segredo mantido maniacamente pela família. Mas que ele merece melhor emprego culinário, merece.
Assim como a boa carne brasileira. Ela sofre nos rodízios. Não que seja sempre mal preparada; mas o sistema de rodízio (mais uma vez a ilusão de que quantidade é documento) termina soterrando qualquer veleidade gastronômica -inclusive de quem ama carne. Ok, é um jeito folclórico e festivo de servir um dos melhores produtos nacionais. E tem suas raízes fincadas numa região tradicional, o pampa gaúcho.
Mas cá entre nós: é ou não é desesperador? Você chega ali louco para comer boa carne -começar talvez com uma costelinha de porco, depois uma fatia de fraldinha, em seguida um belo contrafilé e, no final, para divertir, uma fatia de paleta de cordeiro. Isso é seu plano de vôo. Mas o que acontece, na real? O primeiro corte que chega é uma picanha de búfalo (e você, com fome, não recusa), em seguida o coração de frango (ainda a fome), logo o cupim, depois a calabresa... no final, um peixe! E salve-se quem puder. (Não vou nem falar dos sushis despedaçados nem dos camarões borrachudos.) Continuo pregando que se modernize o rodízio: que cada um anote as carnes preferidas, e que elas sejam trazidas na ordem. Um misto de rodízio e à la carte. Quem se habilita?
Claro, nesse novo sistema estará terminantemente proibida outra praga que se tornou uma moda imorredoura da cidade: a picanha na chapa. É aquela picanha, ou outra carne qualquer, que chega à mesa numa chapa de ferro quentíssima e fumegante. Trata-se da mais eficiente maneira de destruir o ponto da carne (ela pode até chegar no ponto pedido, mas depois de três minutos já estará passada demais); e de destruir a atmosfera ao redor, que fica impregnada de fumaça. Peles, cabelos, gravatas, tudo passa a brilhar com a fina camada de óleo que vai sendo aspergida pela chapa, além do calor. Coisa que, no entanto, não acontece nos teppans japoneses. Eles têm lá seus segredos. Nós ficamos com a gordura.


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