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Caçador de mitos
Crítico da Folha dispara contra cinco ícones gastronômicos "intocáveis" de São Paulo, entre eles o descomunal sanduíche de mortadela do Mercadão e o sistema de rodízio das churrascarias
JOSIMAR MELO
CRÍTICO DA FOLHA
Eu adoro ir ao Mercado Municipal. Eu também adoro comer em botecos -como os de
lá. Mas odeio filas (como a dos
bares do Mercadão), especialmente para comer. E o ódio torna-se fúria quando no final da
fila há uma frustração.
No Bar do Mané, a grande
maioria das pessoas pedirá um
enorme, descomunal, sanduíche de mortadela, que todo
mundo se habituou a achar que
é um dos melhores do mundo.
Que é gigante, é. Quase meio
quilo de fatias de mortadela
("pesadas" a olho, no mínimo
uns 300 g) mal sobraçadas por
duas humilhadas fatiazinhas de
pão. Ah, um pouco de alface e
tomate também. Mas... será isso um bom sanduíche? Um
sanduíche não deveria equilibrar os sabores do pão e de seus
recheios? Ou, sendo mais prosaico, não deveria caber na boca, ser capaz de ser mordido? E
finalmente: para ser glosado
como o melhor do Brasil, não
deveria ter alguma arte culinária? Um tempero especial, um
ingrediente produzido pela cozinha... e não apenas a mortadela que você pode comprar no
supermercado, num pão que
você acha na padaria do bairro?
Não vale a fila. E o curioso é
que nem o público do Mercadão achava que valesse, na
maior parte dos mais de 70
anos do Bar do Mané. O mito
desse sanduíche tem uns 15
anos, quando a imprensa começou a incensá-lo. Antes, o
Mané vendia bem mais o gostoso sanduíche de pernil -este
sim montado em proporções
mais adequadas ao perímetro
da boca e recheado de arte culinária (o assar do pernil, o fazer
do molho). Continua em cartaz,
embora soterrado pelos 500
sanduíches de mortadela vendidos em dias de movimento.
Talvez impere a máxima de
que tamanho é documento. Daí
a monumentalidade deste sanduíche de mortadela e de outro
ícone paulistano ali vizinho: o
pastel de bacalhau do Hocca
Bar. Mais uma vez, um problema de conceito e de sabor. O famoso pastel é uma desfaçatez
ergonômica. O recheio é tanto
que destrói o delicado equilíbrio que os chineses demoraram séculos para arquitetar nos
pastéis. E desequilibra também
o sabor. Muito recheio para
pouca massa. E um bacalhau
que deixa a desejar: seco, salgado... Se você está no Hocca Bar,
por que não pedir seus outros
pastéis bem melhores? (Uma
das especialidades é o de mussarela de búfala com tomate seco.) Ou então o suculento sanduíche de calabresa da casa?
Camada pegajosa
Entre as outras modas da cidade que introduzem ingredientes inadequados no lugar
errado está a do requeijão Catupiry. Adoro. Admiro sua pungência, sua cremosidade. Seu
ponto de sal faz dele o acompanhamento ideal para compotas
brasileiras, que são ricas em
açúcar (de goiaba, de jaca, de
banana). Agora: pizza de Catupiry? (E ainda feita com requeijões inferiores, por sinal.) Não
dá. Carne gratinada com Catupiry? Livrai-me. O problema
não está no ingrediente, mas na
combinação que se faz com ele.
Enquanto a mussarela sobre a
pizza tem aquele toque divertido de elasticidade, o requeijão,
pelo contrário, tende a ficar
pastoso. Vira uma camada pegajosa que sufoca os demais ingredientes. Mas Catupiry é especial, Catupiry é caro; vai convencer alguém de que não é chique. Fico feliz pela celebridade
alcançada pelo bravo requeijão,
nascido de um segredo mantido maniacamente pela família.
Mas que ele merece melhor
emprego culinário, merece.
Assim como a boa carne brasileira. Ela sofre nos rodízios.
Não que seja sempre mal preparada; mas o sistema de rodízio (mais uma vez a ilusão de
que quantidade é documento)
termina soterrando qualquer
veleidade gastronômica -inclusive de quem ama carne. Ok,
é um jeito folclórico e festivo de
servir um dos melhores produtos nacionais. E tem suas raízes
fincadas numa região tradicional, o pampa gaúcho.
Mas cá entre nós: é ou não é
desesperador? Você chega ali
louco para comer boa carne
-começar talvez com uma costelinha de porco, depois uma
fatia de fraldinha, em seguida
um belo contrafilé e, no final,
para divertir, uma fatia de paleta de cordeiro. Isso é seu plano
de vôo. Mas o que acontece, na
real? O primeiro corte que chega é uma picanha de búfalo (e
você, com fome, não recusa),
em seguida o coração de frango
(ainda a fome), logo o cupim,
depois a calabresa... no final,
um peixe! E salve-se quem puder. (Não vou nem falar dos
sushis despedaçados nem dos
camarões borrachudos.) Continuo pregando que se modernize o rodízio: que cada um anote
as carnes preferidas, e que elas
sejam trazidas na ordem. Um
misto de rodízio e à la carte.
Quem se habilita?
Claro, nesse novo sistema estará terminantemente proibida
outra praga que se tornou uma
moda imorredoura da cidade: a
picanha na chapa. É aquela picanha, ou outra carne qualquer,
que chega à mesa numa chapa
de ferro quentíssima e fumegante. Trata-se da mais eficiente maneira de destruir o ponto
da carne (ela pode até chegar
no ponto pedido, mas depois de
três minutos já estará passada
demais); e de destruir a atmosfera ao redor, que fica impregnada de fumaça. Peles, cabelos,
gravatas, tudo passa a brilhar
com a fina camada de óleo que
vai sendo aspergida pela chapa,
além do calor. Coisa que, no entanto, não acontece nos teppans japoneses. Eles têm lá
seus segredos. Nós ficamos
com a gordura.
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