São Paulo, sábado, 14 de outubro de 2000

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"O DEMÔNIO E A SRTA. PRYM"

Os estorvos no estranho caminho de Paulo Coelho

BIA ABRAMO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Paulo Coelho , do alto de seus milhões de exemplares vendidos, agora posa de literato.
Depois de anos driblando mais ou menos diplomaticamente as críticas, ele partiu para o ataque. Diz que o que faz é "vanguarda" e quer o aval da Academia Brasileira de Letras.
Em entrevista recente ao site no.com.br, espinafrou James Joyce ("um equívoco", "quem escreve como ele é a retaguarda", com que então, ele seria a "vanguarda") e fez uma definição curiosa sobre o que chama de "linguagem": "Eu uso uma linguagem moderna, vazia, explorando temas antigos. Vazia porque não vou gastar três páginas feito Flaubert, que eu adoro, para descrever um chapéu. Minha linguagem é simbólica mas também direta, isso é a literatura de hoje".
Pois é, "literatura de hoje", então, é Paulo Coelho. Deixando de lado o aspecto danoninho espiritual (ou seja, não é, mas diz que vale por um bifinho), cumpre encarar o que, então, há de "literatura" em "O Demônio e a Srta. Prym".
Começa a leitura. Somos apresentados ao povoado de Viscos, que recebe a visita de um "estrangeiro", acompanhado de nada menos que um demônio. Ficamos sabendo que "o estrangeiro" vai submeter a aldeia a uma prova: 11 barras de ouro serão entregues aos seus moradores se algum deles matar uma pessoa, num prazo de uma semana.
Com isso, o estranho quer provar que a humanidade é, essencialmente, má.
Digladiando-se com "o estrangeiro" e seu demônio, temos a moça srta. Prym, uma velha e solitária Berta e personagens apresentados simplesmente como o "prefeito" a "mulher do prefeito", a "dona do hotel".
Basta como sinopse, uma vez que, a exemplo de outros de seus livros, "O Demônio e a Srta. Prym" assemelha-se a uma parábola esticada, que poderia ter sido contada em três parágrafos, como as várias historietas que costumam rechear suas narrativas.
Notável, nos livros de Coelho, é a sensação de que a narrativa, a história, não tem muita importância, nem merece muita atenção do autor: basta uma situação de estrutura bastante simples, esboçada de forma quase icônica e conduzida de maneira chata.
Aqui, um parêntese.
É curioso que parte do resenhismo cultural costuma chamar de chato o que é extremamente intelectualizado ou o que já foi sagrado e consagrado como "arte". Na própria fala de Coelho, encontramos essa associação, quando ele menciona o pobre Flaubert "gastando" três páginas para descrever um chapéu.
A indústria cultural, buscando um mínimo denominador comum no mercado globalizado, cada vez mais prova que a chatice não é privilégio da "dificuldade": a "facilidade" também pode ser inacreditavelmente monótona, enfadonha, aborrecida -em uma palavra: chata.
É uma nova categoria, essa: dos produtos do entretenimento que nem ao menos entretêm, divertem ou distraem. Não é a única possível, haja visto o outro grande fenômeno editorial dos últimos tempos, o Harry Potter de J.K. Rowling, que justamente só se tornou "fenômeno" porque redescobriu como divertir crianças e adultos com boas histórias.
Reclamando à maneira da Alice de Lewis Carroll, se não há história, o que há nos livros de Coelho? Ah, a tal "linguagem moderna e vazia". O que é "moderno" não fica muito claro -a não ser que o escritor esteja falando de uma certa habilidade em "limpar" o texto de qualquer referência muito local, de maneira que seja entendido em qualquer canto do mundo, como "moderno".
Pode até ser que esse seja mesmo um traço de "modernidade" nos produtos culturais, ou seja, a higiene do individual, do regional.
Ao lado de uma espécie de ecumenismo religioso, talvez seja essa uma das chaves para compreender a penetração de Coelho em diversas línguas e tradições religiosas. Não importa se isso é produto da intuição ou de cálculo, o fato é que mostra como o escritor entende de seu rebanho.
Já o "vazio", este é imediatamente apreensível. Por um lado, o texto de Coelho parece ser uma síntese, que já se provou eficientíssima e este "O Demônio" deve provar pela nona vez, de todo o repertório de frases feitas e diálogos "funcionais" de best sellers de vários tipos.
Um certo clima de mistério nos parágrafos iniciais do livro e o trato pedestre com o sobrenatural remetem a Stephen King, o primeiro embate entre "o estrangeiro" e a moça lembram aqueles livrinhos de bancas para moças, o truque de usar historietas para exemplificar situações morais pertence ao universo da auto-ajuda, o recurso das parábolas está na Bíblia. É, de fato, uma linguagem "vazia", desencarnada, impessoal.
Basicamente, o que os livros de Coelho -e este mais recente não constitui exceção- têm a oferecer para o leitor é uma coleção não muito rigorosa de frases, máximas e "pensamentos", parecidos com aqueles que, uns anos atrás, vinham como brinde de umas balas para refrescar o hálito. Não há dúvida de que isso corresponde às expectativas de milhões de leitores (o último número em relação a Coelho fala em 29 milhões de exemplares vendidos), mas tais expectativas pouco têm a ver com livros ou literatura.
Porque é justamente da literatura, da narrativa e da linguagem, que Coelho se livra assim que pode em seus livros, como se estas fossem estorvos em seu estranho caminho.


O Demônio e a Srta. Prym
 
Autor: Paulo Coelho
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 19,90 (228 págs.)




Texto Anterior: Livros/lançamentos - José Arbex Jr.: Autran Dourado nos apresenta JK
Próximo Texto: Resenha da semana - Bernardo Carvalho: Recursos esgotados
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.