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"O DEMÔNIO E A SRTA. PRYM"
Os estorvos no estranho caminho de Paulo Coelho
BIA ABRAMO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Paulo Coelho , do alto de
seus milhões de exemplares
vendidos, agora posa de literato.
Depois de anos driblando mais
ou menos diplomaticamente as
críticas, ele partiu para o ataque.
Diz que o que faz é "vanguarda" e
quer o aval da Academia Brasileira de Letras.
Em entrevista recente ao site
no.com.br, espinafrou James Joyce ("um equívoco", "quem escreve como ele é a retaguarda", com
que então, ele seria a "vanguarda") e fez uma definição curiosa
sobre o que chama de "linguagem": "Eu uso uma linguagem
moderna, vazia, explorando temas antigos. Vazia porque não
vou gastar três páginas feito Flaubert, que eu adoro, para descrever
um chapéu. Minha linguagem é
simbólica mas também direta, isso é a literatura de hoje".
Pois é, "literatura de hoje", então, é Paulo Coelho. Deixando de
lado o aspecto danoninho espiritual (ou seja, não é, mas diz que
vale por um bifinho), cumpre encarar o que, então, há de "literatura" em "O Demônio e a Srta.
Prym".
Começa a leitura. Somos apresentados ao povoado de Viscos,
que recebe a visita de um "estrangeiro", acompanhado de nada
menos que um demônio. Ficamos
sabendo que "o estrangeiro" vai
submeter a aldeia a uma prova: 11
barras de ouro serão entregues
aos seus moradores se algum deles matar uma pessoa, num prazo
de uma semana.
Com isso, o estranho quer provar que a humanidade é, essencialmente, má.
Digladiando-se com "o estrangeiro" e seu demônio, temos a
moça srta. Prym, uma velha e solitária Berta e personagens apresentados simplesmente como o
"prefeito" a "mulher do prefeito",
a "dona do hotel".
Basta como sinopse, uma vez
que, a exemplo de outros de seus
livros, "O Demônio e a Srta.
Prym" assemelha-se a uma parábola esticada, que poderia ter sido
contada em três parágrafos, como
as várias historietas que costumam rechear suas narrativas.
Notável, nos livros de Coelho, é
a sensação de que a narrativa, a
história, não tem muita importância, nem merece muita atenção do autor: basta uma situação
de estrutura bastante simples, esboçada de forma quase icônica e
conduzida de maneira chata.
Aqui, um parêntese.
É curioso que parte do resenhismo cultural costuma chamar de
chato o que é extremamente intelectualizado ou o que já foi sagrado e consagrado como "arte". Na
própria fala de Coelho, encontramos essa associação, quando ele
menciona o pobre Flaubert "gastando" três páginas para descrever um chapéu.
A indústria cultural, buscando
um mínimo denominador comum no mercado globalizado,
cada vez mais prova que a chatice
não é privilégio da "dificuldade":
a "facilidade" também pode ser
inacreditavelmente monótona,
enfadonha, aborrecida -em
uma palavra: chata.
É uma nova categoria, essa: dos
produtos do entretenimento que
nem ao menos entretêm, divertem ou distraem. Não é a única
possível, haja visto o outro grande
fenômeno editorial dos últimos
tempos, o Harry Potter de J.K. Rowling, que justamente só se tornou "fenômeno" porque redescobriu como divertir crianças e
adultos com boas histórias.
Reclamando à maneira da Alice
de Lewis Carroll, se não há história, o que há nos livros de Coelho?
Ah, a tal "linguagem moderna e
vazia". O que é "moderno" não fica muito claro -a não ser que o
escritor esteja falando de uma certa habilidade em "limpar" o texto
de qualquer referência muito local, de maneira que seja entendido em qualquer canto do mundo,
como "moderno".
Pode até ser que esse seja mesmo um traço de "modernidade"
nos produtos culturais, ou seja, a
higiene do individual, do regional.
Ao lado de uma espécie de ecumenismo religioso, talvez seja essa uma das chaves para compreender a penetração de Coelho
em diversas línguas e tradições religiosas. Não importa se isso é
produto da intuição ou de cálculo,
o fato é que mostra como o escritor entende de seu rebanho.
Já o "vazio", este é imediatamente apreensível. Por um lado, o
texto de Coelho parece ser uma
síntese, que já se provou eficientíssima e este "O Demônio" deve
provar pela nona vez, de todo o
repertório de frases feitas e diálogos "funcionais" de best sellers de
vários tipos.
Um certo clima de mistério nos
parágrafos iniciais do livro e o trato pedestre com o sobrenatural
remetem a Stephen King, o primeiro embate entre "o estrangeiro" e a moça lembram aqueles livrinhos de bancas para moças, o
truque de usar historietas para
exemplificar situações morais
pertence ao universo da auto-ajuda, o recurso das parábolas está
na Bíblia. É, de fato, uma linguagem "vazia", desencarnada, impessoal.
Basicamente, o que os livros de
Coelho -e este mais recente não
constitui exceção- têm a oferecer para o leitor é uma coleção
não muito rigorosa de frases, máximas e "pensamentos", parecidos com aqueles que, uns anos
atrás, vinham como brinde de
umas balas para refrescar o hálito.
Não há dúvida de que isso corresponde às expectativas de milhões
de leitores (o último número em
relação a Coelho fala em 29 milhões de exemplares vendidos),
mas tais expectativas pouco têm a
ver com livros ou literatura.
Porque é justamente da literatura, da narrativa e da linguagem,
que Coelho se livra assim que pode em seus livros, como se estas
fossem estorvos em seu estranho
caminho.
O Demônio e a Srta. Prym
Autor: Paulo Coelho
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 19,90 (228 págs.)
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