São Paulo, sábado, 14 de outubro de 2000

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"GAIOLA ABERTA"

Autran Dourado nos apresenta JK

JOSÉ ARBEX JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

"A minha intimidade com JK ia a tal ponto que chega mesmo ao ridículo de eu despachar com ele no banheiro, o que não me agradava muito. Me incomodava sobretudo ele ficar se ensaboando na banheira. Não havia nele o mais longínquo traço de homossexualismo, é preciso que se diga, hoje que isso está na moda. Uma vez, como ele mergulhasse o corpo na banheira, me deu uma aflição enorme, cuidando que ele ia estragar o relógio de ouro que tinha no pulso. Não resisti e disse o relógio! Você é mesmo um capiau do sul de Minas, este relógio é à prova d'água, disse ele. É a última novidade. JK sempre foi muito progressista e novidadeiro."
Nesse tom, os bastidores do governo do presidente Juscelino Kubitschek (1956-1960) são totalmente devassados em "Gaiola Aberta" pelo romancista mineiro Autran Dourado, 74, vencedor, em agosto, da 12ª edição do prêmio Luís de Camões, a mais alta distinção na literatura de língua portuguesa (os outros brasileiros premiados foram João Cabral de Melo Neto, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e Antonio Candido).
Dourado conviveu durante nove anos com JK, primeiro no governo de Minas Gerais e depois na presidência. Tornou-se o seu assessor de imprensa, em uma época que o cargo não existia oficialmente. A pedido do próprio JK, participava das mais importantes reuniões de cúpula e da intimidade das decisões políticas.
Suas memórias constituem um documento valioso, surpreendente e, de certa forma, divertido. Elas revelam um JK irresponsável, ousado, brilhante, mulherengo, autoritário, sentimental. E totalmente permeável às opiniões de seu "entourage", sobretudo às do poeta Augusto Frederico Schmidt, ghost-writer favorito de seus discursos, e às do próprio Dourado.
JK era descuidado com os papéis, mesmo os mais importantes, e não raro assinava decretos sem os ler (não é só FHC...). Ficamos sabendo, por exemplo, que este foi o caso do decreto que tornava de domínio público as obras de Machado de Assis (o texto do decreto foi de autoria de Dourado).
Um dos lances diplomáticos mais ousados de seu governo, a Operação Pan-americana, não foi consequência de uma estratégia pensada para alçar o Brasil à liderança do hemisfério (como JK dá a entender em suas próprias memórias). Foi resultado de um rompante intuitivo que Schmidt teve durante uma conversa com Dourado, na casa do poeta. Este estava ""vestido" à sua maneira: nu, apenas sobre os ombros um robe de chambre. Não era uma figura muito agradável à vista: gordo, grande e peludo, o sexo à mostra...". JK aprovou a idéia.
Mais surpreendente ainda: durante quase um mês, o Brasil ficou sem presidente. JK sofreu um infarto e a primeira-dama, Sarah Kubitschek, não quis revelar a notícia. Para despistar a imprensa, o próprio Dourado vestiu-se um dia como JK e acenou para os jornalistas, de longe, ao embarcar em um helicóptero. No Palácio do Catete, Dourado assinava a papelada diariamente, no lugar do presidente: "Foi assim que foram feitos alguns generais e embaixadores".
E assim vão se sucedendo, no livro, os episódios e as revelações bombásticas, mas em tom de prosa mineira. Conspirações, tentativas de suborno e de sedução envolvendo altas personalidades (incluindo um almoço com um empresário amigo de Roberto Marinho), lirismo. Não falta nenhum ingrediente apropriado a um bom romance. Só que -garante a autor- é tudo verdade.
Se a narrativa leve e solta é uma grande virtude do livro, talvez seja sua maior falha.
Dourado não tem a menor preocupação de contextualizar os fatos. Quem não conhece a história do período, muitas vezes ficará "boiando". Refere-se, por exemplo, à Orquima, sem explicar que se tratou de uma empresa criada em 1949 por um grupo de imigrantes alemães e austríacos, refugiados da Segunda Guerra, para produzir materiais (terras raras) para a indústria nuclear.
Ainda assim, é um livro precioso para os historiadores e para todos os que queiram conhecer um pouco mais o modo como se faz política neste país.


Gaiola Aberta (Tempos de JK e Schmidt)
    
Autor: Autran Dourado
Editora: Rocco
Quanto: R$ 23 (228 págs.)




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