São Paulo, quarta, 14 de outubro de 1998

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Antropofagia é hoje sinônimo de importação

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Marcos Augusto Gonçalves, em sua coluna de domingo de algumas semanas atrás, protestou contra o uso abusivo que se vai fazendo do termo "antropofagia". A palavra entrou de novo em moda com a última Bienal. Concordo com Marcos Augusto: tudo virou antropofagia e canibalismo nos dias que correm.
Voltemos ao "Manifesto Antropofágico", publicado em 1928 por Oswald de Andrade. Naquele texto, havia uma reação enorme à chamada cultura ocidental. O antropofagismo declarava-se "contra Goethe, contra a Mãe dos Gracos" -aludindo simultaneamente à plenitude do poeta alemão e à virtude estrita da matrona romana. Havia ódio ao catolicismo jesuíta: "contra todas as catequeses". Havia, em Oswald de Andrade, um forte componente de recusa à Europa e um elogio ao que tivéssemos de selvagem, de inculto, de bárbaro. A "revolução caraíba" era o horizonte da antropofagia.
Claro que esse conceito é em si ambíguo. De um lado, existe o ato indígena violento, de matar o invasor branco. De outro, há a idéia de "deglutição", de "digestão", ou seja, o propósito de absorver a influência estrangeira.
Em muito do que se diz sobre a Bienal, sobre a antropofagia etc., parece que essa ambiguidade vai sendo desfeita. Faz-se da idéia de "canibalismo" um simples sinônimo da idéia de "influência". Ou seja, quando determinado artista "relê" uma obra do século 19, como o "Radeau de la Méduse", de Géricault, ou quando um brasileiro reinterpreta o barroco europeu, pronto! Estamos diante de um caso de antropofagia, de canibalismo.
O conceito vai ficando enganoso. Antropofagia, a meu ver, é menos o ato de influenciar-se pelo estrangeiro e mais o ato de negá-lo. A devoração não é, creio eu, confissão de dependência estética. Temos, na verdade, uma distorção ideológica que diz muito a respeito da conjuntura nacional.
No fundo, é da política econômica do governo Fernando Henrique que se trata. Iludimo- nos, ao longo destes quatro anos, com a promessa de capitais externos. Deleitamo- nos com quinquilharias importadas. Tudo, na verdade, reproduzia a síndrome da dependência econômica.
Mas, enquanto ocorria isto, articulava-se todo um discurso a favor da grandeza nacional, do desenvolvimento auto-sustentado da economia brasileira. Ou seja, tudo o que significasse importação, dependência, absorção de capitais, era apresentado como esperança e afirmação do país. Do mesmo modo, quanto melhor a impressão causada por FHC em colóquios internacionais, mais claro ficava o fato de que o Brasil estava a um passo de entrar no Primeiro Mundo.
Pobre Oswald! O componente agressivo de seu manifesto canibal foi sendo entendido, nesse contexto, como submissão consumista às potências estrangeiras. Que "antropofagia" tenha virado sinônimo de "influência" é sinal de que, no nível econômico, a importação de mercadorias passou a ser tida como garantia de desenvolvimento.
Critico, assim, a moda de falar de antropofagia a qualquer custo. Começamos a perceber, aliás, que esse custo é alto: vide o que acontece com as bolsas de valores. Mas cabe aqui uma nuance. Quando os organizadores da Bienal usam (ou abusam) do conceito oswaldiano, produz-se, como por milagre, uma inversão benéfica.
Pela primeira vez, um conceito brasileiro, um modo selvagem de ver as coisas, uma noção estética nacional, criada pelo paulista Oswald, se encarrega de dar conta da produção artística contemporânea. Até pelo fato de ter sido empregado vagamente, o conceito de antropofagia recobre muito do que se produz modernamente nas artes plásticas. Desconfio, claro, das famosas "chaves conceituais" com que toda manifestação artística contemporânea se torna compreensível milagrosamente. A "chave antropofágica" é tão discutível quanto qualquer outra. Ocorre que, desta vez, não dependemos de conceitos abstratos e formais -"a desmaterialização", "a questão do suporte", por exemplo- para dar conta do que está sendo mostrado na Bienal.
O conceito de "antropofagia" funciona a seu modo. Nesta circunstância -que, como vimos acima, é falsa-, uma visão própria se afirma. A Bienal é oswaldiana, nacionalista, brasileira, quando traduz qualquer obra ao conceito selvagem de antropofagia. Trai esse conceito de antropofagia ao confundi-lo com o conceito de influência. Trai a utopia do que deve ser o Brasil, confundindo canibalismo e importação. Mas não trai, ao mesmo tempo, o Brasil, quando chama o que faz de antropofagia.
Essas ambiguidades todas não se resolvem no plano artístico, muito menos no plano da "curadoria". A dependência econômica é um fato real -FHC que o diga, pois é especialista no assunto- e esta antropofagia modernizada, esta ressurreição de Oswald, esta moda canibal, são um fato ideológico. Estamos em 1928, sob muitos aspectos. Um ano antes do crash. O próprio Oswald, cuja obra não sou dos mais indicados para defender, iria rever as consequências estéticas e políticas de seu deslumbramento tropical.
Mas é como se, na dúvida, na crise, no desespero, todos nós recorrêssemos à exasperação bárbara de um nacionalismo derrotado. A arte se faz na oposição; isto é certo. Mas nossa oposição é exaltatória, nacional, tropicalista. Daí a ambiguidade de tudo: o ruim vira bom, o precário se torna perfeito, o deboche se torna seriedade.
Assim é que FHC se mostra ao mesmo tempo como colonizado e como prócer da nacionalidade. E é por isso que a antropofagia vira elogio do consumo, da dependência, da submissão cultural. Este país é gênio na opressão sobre si mesmo.

Conheci José Paulo Paes só de vista, mas guardo deste excelente poeta e tradutor a lembrança de uma pessoa de enorme delicadeza. Foi sempre atencioso comigo, opinando com generosidade sobre os livros que lhe enviava. Creio que muitos candidatos a escritor, no Brasil inteiro, são gratos a ele. Sua morte, na semana passada, priva-nos não só de um escritor dos mais sensíveis, mas de um exemplo raro de dedicação à literatura; missão que ele desempenhou com mente lúcida e coração aberto.



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