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Antropofagia é hoje sinônimo de importação
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
Marcos Augusto Gonçalves,
em sua coluna de domingo de
algumas semanas atrás, protestou contra o uso abusivo
que se vai fazendo do termo
"antropofagia". A palavra entrou de novo em moda com a
última Bienal. Concordo com
Marcos Augusto: tudo virou
antropofagia e canibalismo
nos dias que correm.
Voltemos ao "Manifesto Antropofágico", publicado em
1928 por Oswald de Andrade.
Naquele texto, havia uma reação enorme à chamada cultura ocidental. O antropofagismo declarava-se "contra Goethe, contra a Mãe dos Gracos"
-aludindo simultaneamente
à plenitude do poeta alemão e
à virtude estrita da matrona
romana. Havia ódio ao catolicismo jesuíta: "contra todas as
catequeses". Havia, em Oswald de Andrade, um forte
componente de recusa à Europa e um elogio ao que tivéssemos de selvagem, de inculto,
de bárbaro. A "revolução caraíba" era o horizonte da antropofagia.
Claro que esse conceito é em
si ambíguo. De um lado, existe
o ato indígena violento, de
matar o invasor branco. De
outro, há a idéia de "deglutição", de "digestão", ou seja, o
propósito de absorver a influência estrangeira.
Em muito do que se diz sobre
a Bienal, sobre a antropofagia
etc., parece que essa ambiguidade vai sendo desfeita. Faz-se
da idéia de "canibalismo" um
simples sinônimo da idéia de
"influência". Ou seja, quando
determinado artista "relê"
uma obra do século 19, como o
"Radeau de la Méduse", de
Géricault, ou quando um brasileiro reinterpreta o barroco
europeu, pronto! Estamos
diante de um caso de antropofagia, de canibalismo.
O conceito vai ficando enganoso. Antropofagia, a meu ver,
é menos o ato de influenciar-se
pelo estrangeiro e mais o ato
de negá-lo. A devoração não é,
creio eu, confissão de dependência estética. Temos, na verdade, uma distorção ideológica que diz muito a respeito da
conjuntura nacional.
No fundo, é da política econômica do governo Fernando
Henrique que se trata. Iludimo- nos, ao longo destes quatro anos, com a promessa de
capitais externos. Deleitamo-
nos com quinquilharias importadas. Tudo, na verdade,
reproduzia a síndrome da dependência econômica.
Mas, enquanto ocorria isto,
articulava-se todo um discurso a favor da grandeza nacional, do desenvolvimento auto-sustentado da economia
brasileira. Ou seja, tudo o que
significasse importação, dependência, absorção de capitais, era apresentado como
esperança e afirmação do
país. Do mesmo modo, quanto melhor a impressão causada por FHC em colóquios internacionais, mais claro ficava o fato de que o Brasil estava a um passo de entrar no
Primeiro Mundo.
Pobre Oswald! O componente agressivo de seu manifesto
canibal foi sendo entendido,
nesse contexto, como submissão consumista às potências
estrangeiras. Que "antropofagia" tenha virado sinônimo de
"influência" é sinal de que, no
nível econômico, a importação
de mercadorias passou a ser tida como garantia de desenvolvimento.
Critico, assim, a moda de falar de antropofagia a qualquer
custo. Começamos a perceber,
aliás, que esse custo é alto: vide
o que acontece com as bolsas
de valores. Mas cabe aqui uma
nuance. Quando os organizadores da Bienal usam (ou abusam) do conceito oswaldiano,
produz-se, como por milagre,
uma inversão benéfica.
Pela primeira vez, um conceito brasileiro, um modo selvagem de ver as coisas, uma
noção estética nacional, criada pelo paulista Oswald, se encarrega de dar conta da produção artística contemporânea. Até pelo fato de ter sido
empregado vagamente, o conceito de antropofagia recobre
muito do que se produz modernamente nas artes plásticas. Desconfio, claro, das famosas "chaves conceituais"
com que toda manifestação
artística contemporânea se
torna compreensível milagrosamente. A "chave antropofágica" é tão discutível quanto
qualquer outra. Ocorre que,
desta vez, não dependemos de
conceitos abstratos e formais
-"a desmaterialização", "a
questão do suporte", por
exemplo- para dar conta do
que está sendo mostrado na
Bienal.
O conceito de "antropofagia"
funciona a seu modo. Nesta
circunstância -que, como vimos acima, é falsa-, uma visão própria se afirma. A Bienal é oswaldiana, nacionalista, brasileira, quando traduz
qualquer obra ao conceito selvagem de antropofagia. Trai
esse conceito de antropofagia
ao confundi-lo com o conceito
de influência. Trai a utopia do
que deve ser o Brasil, confundindo canibalismo e importação. Mas não trai, ao mesmo
tempo, o Brasil, quando chama o que faz de antropofagia.
Essas ambiguidades todas
não se resolvem no plano artístico, muito menos no plano
da "curadoria". A dependência econômica é um fato real
-FHC que o diga, pois é especialista no assunto- e esta
antropofagia modernizada,
esta ressurreição de Oswald,
esta moda canibal, são um fato ideológico. Estamos em
1928, sob muitos aspectos. Um
ano antes do crash. O próprio
Oswald, cuja obra não sou dos
mais indicados para defender,
iria rever as consequências estéticas e políticas de seu deslumbramento tropical.
Mas é como se, na dúvida, na
crise, no desespero, todos nós
recorrêssemos à exasperação
bárbara de um nacionalismo
derrotado. A arte se faz na
oposição; isto é certo. Mas nossa oposição é exaltatória, nacional, tropicalista. Daí a ambiguidade de tudo: o ruim vira
bom, o precário se torna perfeito, o deboche se torna seriedade.
Assim é que FHC se mostra
ao mesmo tempo como colonizado e como prócer da nacionalidade. E é por isso que a antropofagia vira elogio do consumo, da dependência, da submissão cultural. Este país é gênio na opressão sobre si mesmo.
Conheci José Paulo Paes só de
vista, mas guardo deste excelente poeta e tradutor a lembrança de uma pessoa de enorme delicadeza. Foi sempre
atencioso comigo, opinando
com generosidade sobre os
livros que lhe enviava. Creio
que muitos candidatos a escritor, no Brasil inteiro, são
gratos a ele. Sua morte, na
semana passada, priva-nos
não só de um escritor dos
mais sensíveis, mas de um
exemplo raro de dedicação à
literatura; missão que ele
desempenhou com mente lúcida e coração aberto.
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