São Paulo, domingo, 14 de novembro de 2004

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Multidão de cantoras

Senhoras de mais de 70 anos revivem em espetáculo do Sesc a tietagem a Orlando Silva

LAURA MATTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

O espetáculo começa, e a platéia de cabelos brancos -ou tingidos das mais diversas cores- se cala. Já na primeira canção, as vozes iniciam um coro baixinho, e as mãos, com marcas do tempo e anéis dourados, batucam de leve na perna, na bolsinha a tiracolo.
"Orlando Silva, o Cantor das Multidões", em cartaz no Sesc Vila Mariana (SP), foi visto por mais de 60 mil pessoas, desde a estréia no Rio, em março. Ao menos 80% têm mais 60 anos, de acordo com cálculos de Tuca Andrada, diretor e produtor da peça, além de intérprete do astro da era do rádio.
O cantor gravou mais de 1.400 músicas, inaugurou a tietagem no Brasil e foi o grande fenômeno pré-bossa nova que estourou em 1937. À época, contava 22 anos, a mesma idade da viúva Anatália Ruiz Marcondes Rocha. Hoje com 89, ela praticamente não enxerga, mas fez questão de ir ao teatro e se sentar na primeira fileira. Trajando um elegante chapéu, conjunto de saia e blusa bordada e bolsa a tiracolo, ela diz que "aquelas sim eram letras bonitas." "Hoje só tem a égüinha pocotó, pocotó, pocotó...", cantarola, tentando imitar o funk carioca.
Inspirador de João Gilberto, Orlando (1915-78) foi astro de moços -e principalmente moças- entre o final dos anos 30 e meados dos 50. Com seu vozeirão, embalou a trilha sonora da mocidade de dona Anatália e suas colegas do grupo "golden age" (idade dourada), que se reúne para eventos e foi assistir ao espetáculo. "E não é só essa peça. Já fizemos até cruzeiro e, pelo menos duas vezes por mês, "alugamos" uns moços de 30 anos para dançar", diverte-se Zainha Penteado, 74, que define a trupe como a das "viúvas desamparadas". "Ouvíamos o Orlando pela rádio e sabíamos tudo da vida dele pelas revistas. Lembramos bem da época em que as moças rasgavam a sua roupa, mas o Tuca é muito mais bonito do que ele."
Essa, aliás, é uma unanimidade dentre as espectadoras. Apesar da bem cuidada caracterização do personagem e da semelhança na entonação da voz, o físico do ator, de 39 anos, não lembra o do mirrado cantor das multidões. Como brinca o texto da peça, Tuca é bem mais "marombado" do que o mulato "feinho", que só enlouquecia a mulherada porque elas não podiam vê-lo através do rádio. Elogiado pelas senhoras, o ator experimenta um "revival" da tietagem. "Elas vêm chorando falar comigo, tiram fotos, me dão flores, chocolates, me abraçam, beijam. No Rio, uma senhora foi assistir ao espetáculo sete vezes", diz Tuca.

Do sussurro ao grito
O musical se inicia com o sussurro de uma platéia ainda tímida. "Dentro da alma dolorida, eu tenho um riso teu, meu amor, teu sorriso é um lindo amor..." Chega o samba, e a voz do público começa a se soltar: "Chora cavaquinho, chora, chora o violão também...". Os olhos até se fecham para ver o passado. "Lábios que eu beijei, mãos que eu afaguei, numa noite de lua assim..."
A timidez vai indo embora, e todos aplaudem sem parar, cantam alto, assumem o papel de coro. "Ó jardineira por que estás tão triste, mas o que foi que te aconteceu..."
Ouvem-se gritos quando Tuca entoa mais um grande sucesso romântico: "Meu coração, não sei por quê, bate feliz quando te vê..."
O espetáculo termina com um Orlando Silva já decadente, revendo, num monólogo, sua vida, seus sucessos e fracassos.
"O povo se reunia só para me ouvir cantar." "É mesmo", responde uma senhora na platéia.
"Hoje os jovens casam em dezembro, deixam passar o Carnaval e antes da Semana Santa já estão separados", filosofa. "É assim mesmo", diz outra espectadora.
"As pessoas esquecem rápido", lamenta um cantor ignorado pela TV e gravadoras. "E como!", concorda uma fã. Pouco antes do final -"Tu és divina e graciosa, estátua majestosa, do amor, por Deus esculturada"-, o desabafo devora de vez o coração do público que já passou dos 60: "No Brasil, não se pode envelhecer".


ORLANDO SILVA, O CANTOR DAS MULTIDÕES. Com: Tuca Andrada, Inez Vianna, Marcello Caridade e Marcelo Vianna. Onde: Sesc Vila Mariana (r. Pelotas, 141, SP, tel. 0/xx/11/5080-3000). Quando: sex., às 21h; sáb., às 18h e às 21h; e dom., às 18h. Até 19/12. Quanto: de R$ 15 a R$ 30.


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