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Multidão de cantoras
Senhoras de mais de 70 anos revivem em espetáculo do Sesc a tietagem a Orlando Silva
LAURA MATTOS
DA REPORTAGEM LOCAL
O espetáculo começa, e a platéia
de cabelos brancos -ou tingidos
das mais diversas cores- se cala.
Já na primeira canção, as vozes
iniciam um coro baixinho, e as
mãos, com marcas do tempo e
anéis dourados, batucam de leve
na perna, na bolsinha a tiracolo.
"Orlando Silva, o Cantor das
Multidões", em cartaz no Sesc Vila Mariana (SP), foi visto por mais
de 60 mil pessoas, desde a estréia
no Rio, em março. Ao menos 80%
têm mais 60 anos, de acordo com
cálculos de Tuca Andrada, diretor
e produtor da peça, além de intérprete do astro da era do rádio.
O cantor gravou mais de 1.400
músicas, inaugurou a tietagem no
Brasil e foi o grande fenômeno
pré-bossa nova que estourou em
1937. À época, contava 22 anos, a
mesma idade da viúva Anatália
Ruiz Marcondes Rocha. Hoje
com 89, ela praticamente não enxerga, mas fez questão de ir ao
teatro e se sentar na primeira fileira. Trajando um elegante chapéu,
conjunto de saia e blusa bordada e
bolsa a tiracolo, ela diz que "aquelas sim eram letras bonitas." "Hoje só tem a égüinha pocotó, pocotó, pocotó...", cantarola, tentando
imitar o funk carioca.
Inspirador de João Gilberto, Orlando (1915-78) foi astro de moços -e principalmente moças-
entre o final dos anos 30 e meados
dos 50. Com seu vozeirão, embalou a trilha sonora da mocidade
de dona Anatália e suas colegas do
grupo "golden age" (idade dourada), que se reúne para eventos e
foi assistir ao espetáculo. "E não é
só essa peça. Já fizemos até cruzeiro e, pelo menos duas vezes por
mês, "alugamos" uns moços de 30
anos para dançar", diverte-se Zainha Penteado, 74, que define a
trupe como a das "viúvas desamparadas". "Ouvíamos o Orlando
pela rádio e sabíamos tudo da vida dele pelas revistas. Lembramos
bem da época em que as moças
rasgavam a sua roupa, mas o Tuca
é muito mais bonito do que ele."
Essa, aliás, é uma unanimidade
dentre as espectadoras. Apesar da
bem cuidada caracterização do
personagem e da semelhança na
entonação da voz, o físico do ator,
de 39 anos, não lembra o do mirrado cantor das multidões. Como
brinca o texto da peça, Tuca é bem
mais "marombado" do que o mulato "feinho", que só enlouquecia
a mulherada porque elas não podiam vê-lo através do rádio. Elogiado pelas senhoras, o ator experimenta um "revival" da tietagem.
"Elas vêm chorando falar comigo,
tiram fotos, me dão flores, chocolates, me abraçam, beijam. No
Rio, uma senhora foi assistir ao
espetáculo sete vezes", diz Tuca.
Do sussurro ao grito
O musical se inicia com o sussurro de uma platéia ainda tímida. "Dentro da alma dolorida, eu
tenho um riso teu, meu amor, teu
sorriso é um lindo amor..." Chega
o samba, e a voz do público começa a se soltar: "Chora cavaquinho,
chora, chora o violão também...".
Os olhos até se fecham para ver o
passado. "Lábios que eu beijei,
mãos que eu afaguei, numa noite
de lua assim..."
A timidez vai indo embora, e todos aplaudem sem parar, cantam
alto, assumem o papel de coro. "Ó
jardineira por que estás tão triste,
mas o que foi que te aconteceu..."
Ouvem-se gritos quando Tuca
entoa mais um grande sucesso romântico: "Meu coração, não sei
por quê, bate feliz quando te vê..."
O espetáculo termina com um
Orlando Silva já decadente, revendo, num monólogo, sua vida,
seus sucessos e fracassos.
"O povo se reunia só para me
ouvir cantar." "É mesmo", responde uma senhora na platéia.
"Hoje os jovens casam em dezembro, deixam passar o Carnaval e antes da Semana Santa já estão separados", filosofa. "É assim
mesmo", diz outra espectadora.
"As pessoas esquecem rápido",
lamenta um cantor ignorado pela
TV e gravadoras. "E como!", concorda uma fã. Pouco antes do final -"Tu és divina e graciosa, estátua majestosa, do amor, por
Deus esculturada"-, o desabafo
devora de vez o coração do público que já passou dos 60: "No Brasil, não se pode envelhecer".
ORLANDO SILVA, O CANTOR DAS
MULTIDÕES. Com: Tuca Andrada, Inez
Vianna, Marcello Caridade e Marcelo
Vianna. Onde: Sesc Vila Mariana (r.
Pelotas, 141, SP, tel. 0/xx/11/5080-3000). Quando: sex., às 21h; sáb., às 18h e
às 21h; e dom., às 18h. Até 19/12.
Quanto: de R$ 15 a R$ 30.
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