São Paulo, sábado, 14 de novembro de 1998

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LIVRO - LANÇAMENTOS
Guerra fria no Everest

IVAN FINOTTI
da Reportagem Local


Lançado há um ano nos EUA e agora no Brasil, "A Escalada", de Anatoli Boukreev e Weston DeWalt, chega com uma nova versão de uma das maiores tragédias da história do alpinismo, em que oito pessoas morreram no Everest, em maio de 96.
Em 97, o desastre se transformou em um enorme sucesso literário pelas mãos do jornalista norte-americano Jon Krakauer.
Seu best seller "No Ar Rarefeito" (Companhia das Letras) escalou inclusive a lista dos mais vendidos no Brasil -chegou ao primeiro lugar em março deste ano.
Já "A Escalada" (editora 34) é uma resposta direta ao livro de Krakauer. Um de seus autores, o russo Anatoli Boukreev, responde a acusações de negligência lançadas contra ele em "No Ar Rarefeito". "A Escalada" vai além e inverte os papéis. Nele, Boukreev é o herói e Krakauer, o vilão.
Boukreev nem chegou a ver seu livro entrar nas listas de best sellers nos EUA. Ele morreu soterrado por uma avalanche no Himalaia em dezembro de 97, um mês após o lançamento da obra.
O pano de fundo para a disputa é o mesmo. Em 10 de maio de 1996, uma tempestade pegou de surpresa 26 alpinistas que desciam do topo do Everest. Mais de dez eram clientes que pagaram até US$ 65 mil para escalar a montanha em expedições turísticas.
Oito deles não conseguiram retornar às suas barracas. Alguns morreram a apenas 20 minutos de caminhada do abrigo. Outros perderam mãos e dedos devido à necrose provocada pelo frio.
Krakauer era integrante de uma dessas expedições -fazia uma reportagem para a revista americana "Outside" sobre o crescimento do turismo no Everest. Boukreev era guia em outra expedição.
Os livros de ambos tratam dessa mesma tragédia, falam dos mesmos personagens, são baseados em depoimentos dos mesmos alpinistas. Entretanto, seus finais são divergentes.
Em sua narrativa, Krakauer acusa Anatoli Boukreev de descer do pico do Everest antes da chegada dos clientes. Se tivesse esperado, talvez o russo ajudasse a salvar vidas que estavam sob sua responsabilidade como guia, raciocina o americano.
O livro de Krakauer foi publicado originalmente em abril de 97. Em novembro, saía "A Escalada", em que Boukreev dava sua versão dos fatos ao cinegrafista e escritor Weston DeWalt. Após a morte do russo, DeWalt assumiu seu posto na guerra fria contra Krakauer.
O livro de Boukreev e DeWalt apresenta Krakauer como um péssimo alpinista, que pede, por exemplo, o oxigênio dos colegas após terminar o seu.
Por outro lado, "A Escalada" evidencia o resgate que o russo empreendeu sozinho na noite de 10 de maio, salvando da morte três alpinistas perdidos e semicongelados no meio de uma nevasca.
Krakauer fala desse resgate em "No Ar Rarefeito" e reconhece a bravura do russo, mas não tanto quanto este gostaria.
Assim, "A Escalada" traz reportagens de jornais e entrevistas que atribuem a Boukreev "um dos mais impressionantes resgates da história do montanhismo".
Quanto ao fato de ter descido do pico antes dos clientes, Boukreev afirma que foram ordens do chefe de sua expedição -que morreu congelado na ocasião. Estando descansado e aquecido, o russo poderia voltar e ajudar os retardatários, se fosse preciso.
Boukreev e DeWalt acusam Krakauer de omitir essas informações apenas para transformar o russo no vilão de seu livro (leia entrevista com Weston DeWalt ao lado).
Krakauer admite que tomou conhecimento desse "plano". E afirma que não publicou a informação porque outras entrevistas o fizeram acreditar que o "plano" nunca existiu realmente.
˛ Polêmica
A polêmica dividiu a comunidade de alpinistas em todo o mundo. Um padrão pode ser notado. Respeitadíssimos montanhistas que estavam no Everest no dia da tragédia concordam, em sua maioria, com a visão de Jon Krakauer. E respeitadíssimos montanhistas que não estavam no Everest naquele dia, escolheram o lado de Anatoli Boukreev.
Entre eles, circulam boatos de que tanto Krakauer quanto DeWalt ainda estão pegando leve um com o outro.
Defensores de Boukreev afirmam possuir uma entrevista gravada provando que Krakauer deliberadamente deixou de ajudar um alpinista em apuros naquele dia.
Já os aliados de Krakauer ventilaram que há muito ainda para ser contado sobre o que aconteceu. Casos de adultério e uso de drogas na alta montanha teriam sido, até agora, mantidos em segredo.
Krakauer e DeWalt debateram há três meses na Internet (www.salonmagazine.com/wlust/ feature/ 1998/08/cov- 03feature3.html). São dezenas de páginas, em inglês, detalhando cada discordância.
Independente da polêmica, ambos os livros contam a história arrepiante com competência.
"No Ar Rarefeito" tem o mérito de introduzir muito bem o assunto. Qualquer morador de cidade grande, acostumado a um sofá, vai entender para que serve cada instrumento de escalada e os problemas físicos e mentais enfrentados acima dos 8.000 metros -onde o oxigênio é raro.
"A Escalada" não tem essa preocupação didática -afinal, são as memórias de um alpinista profissional. Por outro lado, o livro conta casos interessantes de quem vive desse esporte.
Certa vez, após a perda do apoio governamental em consequência do fim da União Soviética, Boukreev foi obrigado a vender seu equipamento de escalada no Himalaia para poder comprar uma passagem de volta para casa.
A edição brasileira de "A Escalada" traz o subtítulo "A Verdadeira História da Tragédia no Everest". Não é o subtítulo original, cuja tradução seria "Ambições Trágicas no Everest".
Mas a edição brasileira de "No Ar Rarefeito" também foi ligeiramente adulterada. O subtítulo "Um Relato da Tragédia no Everest em 1996" era originalmente "Uma Avaliação Pessoal do Desastre do Monte Everest". Segundo a Companhia das Letras, Krakauer não dá mais entrevistas sobre o livro.
˛

Livro: A Escalada Autores: Anatoli Boukreev e Weston DeWalt Lançamento: editora 34 Quanto: R$ 28 (320 págs.)


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