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LIVRO - LANÇAMENTO
Nabokov disseca crueldade em "Riso no Escuro'
JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas
"Riso no Escuro" é um título perfeito para o esplêndido e terrível
romance de Vladimir Nabokov
que acaba de sair no Brasil.
Resume não só o conteúdo do livro, mas o espírito de toda a literatura de seu autor, que se comprazia em fazer-nos rir das fraquezas
mais íntimas do ser humano,
aquelas que só se revelam na "câmara escura" (para citar outro livro seu) da alma de cada um.
No primeiro parágrafo do livro,
Nabokov anuncia a história que
vai contar: "Era uma vez um homem que se chamava Albinus e vivia em Berlim. Era rico, respeitável
e feliz; certo dia abandonou a mulher por causa de uma jovem
amante; amou, não foi amado; e
sua vida acabou em desastre".
É uma síntese ao mesmo tempo
precisa e enganosa, pois aquilo que
poderia parecer a enésima história
de um infeliz amor extraconjugal
acabará se mostrando um estudo
fino e multifacetado da capacidade
humana de produzir o mal.
O tal Albinus é um crítico de arte
aburguesado, casado e pai de uma
menina de oito anos. Um belo dia,
apaixona-se por Margot, jovem
lanterninha de um cinema, e sua
vida entra em parafuso.
O drama do intelectual maduro
que tem a cabeça virada por uma
garota frívola e sensual já havia sido tratado na literatura, especialmente no romance "Professor
Unrath" (1905), de Heinrich
Mann, que no cinema viraria "O
Anjo Azul". O próprio Nabokov
voltaria ao tema no célebre "Lolita" (1955).
Algumas características distinguem "Riso no Escuro" no interior
desse filão e o tornam um dos livros mais interessantes e atuais de
Nabokov, 60 anos depois de ter sido escrito.
Em primeiro lugar, a forma.
Duas coisas chamam imediatamente a atenção no artesanato literário do autor: a liberdade na manipulação do ponto de vista e o
controle absoluto da velocidade
narrativa.
O narrador, em terceira pessoa, é
onisciente, mas só nos revela, de
cada personagem, aquilo que Nabokov quer que ele nos revele.
Cada cena é decomposta -ou
melhor, desdobrada- a partir dos
vários pontos de vista envolvidos,
quase como numa decupagem cinematográfica, com a diferença de
que o narrador nabokoviano penetra, quando lhe interessa, na consciência dos personagens.
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Ritmo e perspectiva
Analogamente a essa extrema
mobilidade do foco narrativo, o
tempo também é elástico nas mãos
de Nabokov: assim como uma década pode ser comprimida em
poucas linhas, eventos de poucos
minutos podem estender-se por
páginas inteiras.
Outro traço marcante de "Riso
no Escuro" é sua ambientação em
Berlim, cidade em que Nabokov
morou entre 1923 e 1937.
Não que haja no livro uma descrição física da cidade, nem mesmo referências a seus pontos característicos.
Com a mesma desenvoltura com
que molda a velocidade e o foco da
narração, Nabokov usa a geografia
e a história como matérias-primas
a serem trabalhadas a serviço do
efeito literário.
O que fica no livro, no que se refere ao ambiente, é um certo espírito do tempo, uma atmosfera nebulosa de umidade e torpor. Talvez não fosse assim a Berlim nazista dos anos 30, mas é assim a Berlim de Nabokov.
Albinus, o personagem, pertence
a essa cidade, assim como a cidade
é, em grande medida, a projeção de
seu estado de espírito.
A intenção de Nabokov parece
estar sempre além dos fatos, da
psicologia dos personagens, do
ambiente geográfico e histórico.
Seu escopo é, talvez, tão ambicioso
quanto o de Flaubert: traduzir em
literatura as idéias e sensações
mais abstratas.
Em "Riso no Escuro", principalmente depois da entrada em cena
do amoral Axel Rex, amante de
Margot, o objetivo parece ser o de
compor uma anatomia da crueldade e, contraposta a ela, da ingenuidade humana.
˛
Livro: Riso no Escuro
Autor: Vladimir Nabokov
Tradução: Jorio Dauster
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 23 (201 págs.)
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