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RÉPLICA
As certezas céticas
de Giannetti
ANTONIO MARCHIONNI
especial para a Folha
Tinha eu apenas terminado
de dar uma palestra sobre a encíclica "Fé e Razão", na Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, quando alguém me
passou o artigo "As certezas
morais do papa", escrito nesta
Folha em 5 de novembro por
Eduardo Giannetti, a propósito
da mesma encíclica. O articulista, ironizando as certezas
morais do papa, o faz armado
de suas certezas "lógico-céticas". Ei-las.
Primeira certeza do articulista: "O crivo da lógica tem força
normativa para quem almeja o
saber". Fora do saber lógico,
não haveria saber.
Wittgenstein, o filósofo da lógica neste século, ao redor de
1925 foi esperado durante meses pelos cientistas do Círculo
de Viena para uma reunião,
durante a qual começou a ler
poesias e a discursar sobre mística, deixando atônitos os circunstantes.
Ele queria falar-lhes de algo
maior que a lógica, queria mostrar-lhes que a lógica é apenas
um método convencional e
provisório para regular a atividade racional do homem, nada
sabendo fazer, essa lógica, com
relação a outras capacidades
cognitivas do homem, como a
capacidade cognitiva estética, a
pré-racional e a supra-racional, que formam o saber.
Wittgenstein queria deixar
claro um axioma do seu "Tratado Lógico-Filosófico":
"Aquilo sobre o qual não se pode falar, deve-se calar; mas pode ser mostrado".
Isto é, aquilo que pode ser
mostrado, pode existir. O papa,
madre Tereza, dois terços religiosos da humanidade estão
mostrando, e não vejo porque
isso deveria "incomodar" tanto
o nosso cético.
Segunda certeza do articulista: posto quanto supra, falar de
Deus, da revelação e da fé, coisas que fugiriam à lógica racional, é sermos "cômicos".
No inferno giannettiano encontrar-se-ão também os "ridículos", que acreditam em Maria Imaculada e na interpretação "literal" do relato bíblico
da Criação (o articulista desconhece que os biblistas adotam,
além do método literal, também o alegórico, o moral e outros).
Giannetti decidiu: Deus não
existe. Dessa sua certeza, o articulista faz derivar a "comicidade" do catolicismo. Pois, se
Deus não existe, não há a palavra. Se não há a palavra, não
pode existir a fé, que é o assenso do fiel ao verbo de Deus.
Nem poderia haver uma fé organizada socialmente em igreja, com um chefe, ao qual Cristo-Deus deu seja a função de
confirmar na fé os irmãos (Lc
22,32), seja o dom da infalibilidade para executar tal tarefa,
algo "absurdo" na cabeça do
articulista.
Consequentemente, o papa,
com a Igreja Católica, seria um
"retrógrado", "duvidoso",
"não angustiado pela verdade",
"teimosos", "patético", "dogmático", "arrogante", "tendo
linha direta com o ser divino",
causador de "enorme carga de
sofrimento no mundo". Ao cabo disso tudo, só resta a única e
suma verdade: Sua Divindade
o sr.Giannetti.
Em suma, o papa estaria sem
a "ética do pensar", só porque
assumiu a lógica de Deus ("os
meus pensamentos não são os
vossos pensamentos", Isaías
55,8), e não teve a fineza de vir a
São Paulo e consultar o cérebro
do articulista.
E se o Deus-Pai dos cristãos
existe de verdade, como fica o
castelo mental do sr. Giannetti?
Pois, se o articulista adverte o
papa a "não se dar como sabido
o que se ignora", eu advirto o
articulista a não se dar como
inexistente o que não se entende.
Confundir o plano ontológico com o lógico, a ordem do ser
com a ordem do conhecer, significa cometer o pecado original, que o articulista considera
"ridículo", mas que consiste
exatamente na eterna tentação
prometéica e babélica do homem em querer tomar o lugar
de Deus, como insinuou a serpente.
Decididamente, o articulista
não compreendeu a encíclica.
Primeiramente, ela não centra
a moral nem as "certezas morais", ao contrário da encíclica
"Evangelho da Vida", que contém 110 páginas de argumentações morais e científicas, monitoradas pela Academia Pontifícia de Ciências.
A "Fides et Ratio" trata da
questão da verdade no plano
do conhecer, não do agir, e teve
a contribuição de pensadores
da nossa época, não apenas de
Tomás de Aquino, como ironiza o articulista.
Em segundo lugar, na "Fides
et Ratio" o pontífice dialoga como nunca, e respeitosamente,
com todas as filosofias (entre
elas a de Peirce, o papa do articulista), argumentando com
maestria sobre o tema do desejo humano-universal de conhecer e ter respostas definitivas.
O papa propõe uma razão
não apenas curvada sobre si
mesma, intenta a pesquisar o
seu próprio funcionamento lógico, os princípios das ciências
e os significados da linguagem.
A razão humana, afirma o papa, é isso e mais que isso: reconhecendo os limites da filosofia
do fenômeno e adotando a filosofia do ser, a razão detecta em
si as sementes do infinito
transcendente, para o qual se
abre, encontrando-se com a fé.
Se Giannetti não gosta de respostas definitivas e eternas, por
que deveria estar "incomodado" com aqueles que as querem e as procuram?
O articulista se apavora diante de tanta argumentação pontifícia, funde a cabeça, diz que o
papa "não possui originalidade", da mesma maneira que a
raposa da fábula, não alcançando a uva, andou dizendo
por aí que não estava madura.
Eclético de efeito (a encíclica
adverte os teólogos contra o
ecletismo retórico em detrimento de uma formação filosófica rigorosa), o articulista adota a panfletagem do racionalismo da "belle époque".
Ele desconhece que no Brasil
moderno já há, entre os próprios lógicos, cabeças ecumênicas, substituindo o enfrentamento cultural com o entendimento.
Não sabendo o que fazer
diante do nível da encíclica, o
articulista foi passear desengonçadamente pelo dogma da
infalibilidade de 1869, pela
condenação de Galilei, pelo homossexualismo de hoje, pela
ordenação das mulheres de
amanhã, pela "Suma Teológica" de 1260: imaginem quanta
enciclopédia ambulante, fundada sobre areia!
Prefiro e aplaudo o artigo escrito nesta Folha em 26 de outubro pelo sr. Gabeira, que,
tendo colhido a premência da
reflexão pontifícia sobre as
possibilidades da razão na
compreensão do sentido da vida, conclui que os agnósticos
deste limiar do milênio, mesmo não se sentindo de adotar
as respostas de uma razão
coadjuvada pela fé, sentem-se
estimulados pelo pontífice a
procurar respostas.
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Antonio Marchionni, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC/SP), é doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
mestre em Teologia pela PUC/SP, autor do
livro "Deus e o Homem na História dos Saberes" e co-autor do livro "Ética na Virada
do Século"
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