São Paulo, sábado, 14 de novembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RÉPLICA
As certezas céticas de Giannetti

ANTONIO MARCHIONNI
especial para a Folha

Tinha eu apenas terminado de dar uma palestra sobre a encíclica "Fé e Razão", na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, quando alguém me passou o artigo "As certezas morais do papa", escrito nesta Folha em 5 de novembro por Eduardo Giannetti, a propósito da mesma encíclica. O articulista, ironizando as certezas morais do papa, o faz armado de suas certezas "lógico-céticas". Ei-las.
Primeira certeza do articulista: "O crivo da lógica tem força normativa para quem almeja o saber". Fora do saber lógico, não haveria saber.
Wittgenstein, o filósofo da lógica neste século, ao redor de 1925 foi esperado durante meses pelos cientistas do Círculo de Viena para uma reunião, durante a qual começou a ler poesias e a discursar sobre mística, deixando atônitos os circunstantes.
Ele queria falar-lhes de algo maior que a lógica, queria mostrar-lhes que a lógica é apenas um método convencional e provisório para regular a atividade racional do homem, nada sabendo fazer, essa lógica, com relação a outras capacidades cognitivas do homem, como a capacidade cognitiva estética, a pré-racional e a supra-racional, que formam o saber.
Wittgenstein queria deixar claro um axioma do seu "Tratado Lógico-Filosófico": "Aquilo sobre o qual não se pode falar, deve-se calar; mas pode ser mostrado".
Isto é, aquilo que pode ser mostrado, pode existir. O papa, madre Tereza, dois terços religiosos da humanidade estão mostrando, e não vejo porque isso deveria "incomodar" tanto o nosso cético.
Segunda certeza do articulista: posto quanto supra, falar de Deus, da revelação e da fé, coisas que fugiriam à lógica racional, é sermos "cômicos".
No inferno giannettiano encontrar-se-ão também os "ridículos", que acreditam em Maria Imaculada e na interpretação "literal" do relato bíblico da Criação (o articulista desconhece que os biblistas adotam, além do método literal, também o alegórico, o moral e outros).
Giannetti decidiu: Deus não existe. Dessa sua certeza, o articulista faz derivar a "comicidade" do catolicismo. Pois, se Deus não existe, não há a palavra. Se não há a palavra, não pode existir a fé, que é o assenso do fiel ao verbo de Deus. Nem poderia haver uma fé organizada socialmente em igreja, com um chefe, ao qual Cristo-Deus deu seja a função de confirmar na fé os irmãos (Lc 22,32), seja o dom da infalibilidade para executar tal tarefa, algo "absurdo" na cabeça do articulista.
Consequentemente, o papa, com a Igreja Católica, seria um "retrógrado", "duvidoso", "não angustiado pela verdade", "teimosos", "patético", "dogmático", "arrogante", "tendo linha direta com o ser divino", causador de "enorme carga de sofrimento no mundo". Ao cabo disso tudo, só resta a única e suma verdade: Sua Divindade o sr.Giannetti.
Em suma, o papa estaria sem a "ética do pensar", só porque assumiu a lógica de Deus ("os meus pensamentos não são os vossos pensamentos", Isaías 55,8), e não teve a fineza de vir a São Paulo e consultar o cérebro do articulista.
E se o Deus-Pai dos cristãos existe de verdade, como fica o castelo mental do sr. Giannetti? Pois, se o articulista adverte o papa a "não se dar como sabido o que se ignora", eu advirto o articulista a não se dar como inexistente o que não se entende.
Confundir o plano ontológico com o lógico, a ordem do ser com a ordem do conhecer, significa cometer o pecado original, que o articulista considera "ridículo", mas que consiste exatamente na eterna tentação prometéica e babélica do homem em querer tomar o lugar de Deus, como insinuou a serpente.
Decididamente, o articulista não compreendeu a encíclica. Primeiramente, ela não centra a moral nem as "certezas morais", ao contrário da encíclica "Evangelho da Vida", que contém 110 páginas de argumentações morais e científicas, monitoradas pela Academia Pontifícia de Ciências.
A "Fides et Ratio" trata da questão da verdade no plano do conhecer, não do agir, e teve a contribuição de pensadores da nossa época, não apenas de Tomás de Aquino, como ironiza o articulista.
Em segundo lugar, na "Fides et Ratio" o pontífice dialoga como nunca, e respeitosamente, com todas as filosofias (entre elas a de Peirce, o papa do articulista), argumentando com maestria sobre o tema do desejo humano-universal de conhecer e ter respostas definitivas.
O papa propõe uma razão não apenas curvada sobre si mesma, intenta a pesquisar o seu próprio funcionamento lógico, os princípios das ciências e os significados da linguagem.
A razão humana, afirma o papa, é isso e mais que isso: reconhecendo os limites da filosofia do fenômeno e adotando a filosofia do ser, a razão detecta em si as sementes do infinito transcendente, para o qual se abre, encontrando-se com a fé.
Se Giannetti não gosta de respostas definitivas e eternas, por que deveria estar "incomodado" com aqueles que as querem e as procuram?
O articulista se apavora diante de tanta argumentação pontifícia, funde a cabeça, diz que o papa "não possui originalidade", da mesma maneira que a raposa da fábula, não alcançando a uva, andou dizendo por aí que não estava madura.
Eclético de efeito (a encíclica adverte os teólogos contra o ecletismo retórico em detrimento de uma formação filosófica rigorosa), o articulista adota a panfletagem do racionalismo da "belle époque".
Ele desconhece que no Brasil moderno já há, entre os próprios lógicos, cabeças ecumênicas, substituindo o enfrentamento cultural com o entendimento.
Não sabendo o que fazer diante do nível da encíclica, o articulista foi passear desengonçadamente pelo dogma da infalibilidade de 1869, pela condenação de Galilei, pelo homossexualismo de hoje, pela ordenação das mulheres de amanhã, pela "Suma Teológica" de 1260: imaginem quanta enciclopédia ambulante, fundada sobre areia!
Prefiro e aplaudo o artigo escrito nesta Folha em 26 de outubro pelo sr. Gabeira, que, tendo colhido a premência da reflexão pontifícia sobre as possibilidades da razão na compreensão do sentido da vida, conclui que os agnósticos deste limiar do milênio, mesmo não se sentindo de adotar as respostas de uma razão coadjuvada pela fé, sentem-se estimulados pelo pontífice a procurar respostas.
˛ ˛ ˛


Antonio Marchionni, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), é doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestre em Teologia pela PUC/SP, autor do livro "Deus e o Homem na História dos Saberes" e co-autor do livro "Ética na Virada do Século"



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.