São Paulo, sábado, 14 de novembro de 1998

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Noite dos Cristais: "rataiada" e velha direita

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

Aconteceu em 9 de novembro de 1938, há exatos 60 anos, e entrou para a história com um nome charmoso, oposto ao mórbido objetivo. "Kristallnacht", traduzida literalmente do alemão, dá Noite dos Cristais. Lembra festa grã-fina, mas foi a terrível noite da vidraças e vitrines partidas. Brutal operação montada pelo pai do marketing político, o ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels, para vingar o assassinato de um diplomata alemão em Paris por um jovem comunista judeu.
Numa mesma mesma noite, em toda a Alemanha, como que obedecendo a um mesmo comando, foram destruídas e saqueadas 7.000 lojas de propriedade de judeus. Goebbels alegou que foi um protesto espontâneo das massas, mas hoje se sabe que a Noite dos Cristais (um mês depois da anexação dos Sudetos e 40 dias após a capitulação franco-britânica em Munique) marcou uma nova fase do cronograma hitlerista: o nacional-socialismo deixava as camuflagens e assumia sua marca de terror. A Noite dos Cristais, na iconografia histórico-jornalística, passou a representar a hora da verdade quando o populismo de direita se vê obrigado a assumir sua verdadeira identidade totalitária e perversa.
Nossa Noite de Cristais, por enquanto, está marcada por um curioso neologismo: "rataiada". Empregado pelo ministro das Comunicações, Mendonça de Barros, no início da semana, quando a revista "Época" revelou a existência da dupla chantagem: uma contra o governo, por meio das gravações de conversas telefônicas na véspera das privatizações, e outra contra a cúpula do PSDB -o presidente FHC, o ministro José Serra, o governador Mário Covas e o falecido ministro Sergio Motta.
O certo seria ratada (ninhada de ratos). Com o sufixo depreciativo "alhada" e um toque caipira produziu-se a preciosidade. O ministro também poderia ter usado rataria e as derivações ratonice, ratoneiro, ratonear ou ratice, todos ratificados (nada a ver) pelos melhores dicionaristas (caso de rateio, que vem de calcular). Rataiada ou ratalhada (permito-me retirar as aspas por acreditar na breve incorporação ao jargão político, com ou sem caipirismo) sugere a ação simultânea e danosa da rataria, aquele movimento compulsivo dos nojentos animais obrigados, pela multiplicação, a sair da escuridão para fazer os estragos à luz do dia. Noite de Cristais dos roedores.
Isto posto, convém registrar outro dado da fenomenologia político-mediática: os caminhos da nova esquerda. Nesta última semana, o sociólogo Alain Touraine, o premiê italiano Massimo D'Alema, a deputada eleita Luiza Erundina (PSB-SP), a Federação das Indústrias do Rio (Firjan), o petista gaúcho Tarso Genro, seu companheiro brasiliense Cristovam Buarque e, naturalmente, o premiê alemão Gerhard Schroeder ao tomar posse no parlamento apareceram no noticiário indicando novos conceitos, posturas e mesmo etiquetas para esse salutar renascimento social-democrata no auge da maior crise do capitalismo.
Falou-se em "Terceira Via", Touraine sugeriu a política do "Dois e Meio", D'Alema lançou a "Esquerda Global" e Schroeder cunhou a "República do Novo Centro" -esforço para fazer melhor, não diferente. De qualquer forma, descontados os habituais simplismos e as evidentes tentativas de domesticar o esquerdismo, estamos assistindo, ainda que de forma descontextualizada e fragmentária (característica do jornalismo contemporâneo), a uma extraordinária revitalização do socialismo democrático, a terceira deste século.
A primeira se deu por intermédio do humanista francês Jean Jaurès antes da Primeira Guerra Mundial e, a segunda, no pós-guerra, junto com os primeiros confrontos da Guerra Fria, quando Palmiro Togliatti lançou as bases do eurocomunismo inspirado nos conceitos de Antonio Gramsci. Ambas recusaram o "hegemonismo" revolucionário, optando pela política de frentes amplas diante do grande inimigo, o fascismo.
A Nova Esquerda deixa de lado o obreirismo e o macanicismo marxista para se articular contra o macanicismo do capitalismo especulativo. Não parece sensível à reemergência da Velha Ultradireita, consistente e coordenada, por meio dos diferentes fascismos contemporâneos. As deformidades econômicas, sobretudo no plano mundial, corrigem-se pelas medidas econômicas. Relativamente fáceis de serem ajustadas. Mas as anomalias políticas, sobretudo aquelas que dizem respeito aos valores democráticos, estão entranhadas, não apenas nos desvãos das sociedades, mas na alma de seus expoentes.
Recomenda-se aos que minimizam o surto fascista um compêndio recém-lançado, "The New Politics of the Right: Neo- Populist Parties and Movements in Established Democracies" (Hans-Georg Betz & Stefan Imerfall, MacMillan, 268 págs.), com estudos sobre 15 países nos cinco continentes. Os fascismos (ou o "Ur-Fascism", o fascismo ancestral, identificado por Umberto Eco) têm características políticas, ideológicas, mas igualmente morais. É enganador na formulação conceitual, inescrupuloso na ação político-eleitoral e vicioso na escolha dos protagonistas.
Aqui reaparece a rataiada ou ratalhada identificada por Mendonça de Barros. Há uma jogada nitidamente ultradireitista -e, pela brutalidade, fascista- contra alguns expoentes do PSDB paulista, num momento em que este, graças ao desempenho político e eleitoral, se afirma como pólo progressista e interlocutor de um diálogo com as oposições, portanto capaz de influir na ação do governo federal.
Os diversos entrevistados pela revista "Época", figuras de proa do PT, cidadãos acima de qualquer suspeita, mencionaram a participação direta ou indireta de Paulo Maluf nas tentativas de induzir o partido a utilizar documentos falsos nos momentos derradeiros do segundo turno. Configura, quando confirmada a óbvia falsidade, claras infrações ao Código Penal (artigos 304 e 158). Uso intencionalmente a expressão "cidadãos acima de qualquer suspeita" como profissão de fé humanista em contraposição a um tipo de jornalismo, dito investigativo, que nivela por baixo e joga na sarjeta, indistintamente, homens de bem e facínoras.
Ao lado de Paulo Maluf, os figurantes de sempre na grande galeria de escândalos: Lafayette Coutinho, o senador Gilberto Miranda e Collor de Mello. Pena que, por limitações de espaço, não possa reproduzir aqui certas passagens do artigo vetado em 24 de outubro deste ano sobre o estranho conluio entre Antonio Carlos Magalhães e o malufismo, por meio do qual, o Partido da Frente Liberal mostra-se liberal na frente e truculento por dentro.
Mas fica um lembrete dos marinheiros e estivadores. Para impedir que a ratada, rataiada ou ratalhada suba do cais aos navios atracados, usa- se sempre um disco de metal no meio do cordame. Chama-se rateira. Recurso sanitário, metáfora moral, antídoto político.


Notas: ao jornalista-filólogo Josué Machado os agradecimentos pela valiosa dica. Aos interessados no recrudescimento do fascismo sugere-se ainda: "Dictionnaire Historique des Fascismes et du Nazisme" (S. Berstein & P. Milza, Editions Complexe, Paris, 1992) e "Rapport 96 Racisme, Extrême Droite et Antisémitisme en Europe" (Crida, Paris, 1995).



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