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Noite dos Cristais: "rataiada" e velha direita
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
Aconteceu em 9 de novembro
de 1938, há exatos 60 anos, e
entrou para a história com um
nome charmoso, oposto ao
mórbido objetivo. "Kristallnacht", traduzida literalmente
do alemão, dá Noite dos Cristais. Lembra festa grã-fina,
mas foi a terrível noite da vidraças e vitrines partidas. Brutal operação montada pelo pai
do marketing político, o ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels, para vingar o
assassinato de um diplomata
alemão em Paris por um jovem
comunista judeu.
Numa mesma mesma noite,
em toda a Alemanha, como
que obedecendo a um mesmo
comando, foram destruídas e
saqueadas 7.000 lojas de propriedade de judeus. Goebbels
alegou que foi um protesto espontâneo das massas, mas hoje
se sabe que a Noite dos Cristais
(um mês depois da anexação
dos Sudetos e 40 dias após a capitulação franco-britânica em
Munique) marcou uma nova
fase do cronograma hitlerista:
o nacional-socialismo deixava
as camuflagens e assumia sua
marca de terror. A Noite dos
Cristais, na iconografia histórico-jornalística, passou a representar a hora da verdade
quando o populismo de direita
se vê obrigado a assumir sua
verdadeira identidade totalitária e perversa.
Nossa Noite de Cristais, por
enquanto, está marcada por
um curioso neologismo: "rataiada". Empregado pelo ministro das Comunicações,
Mendonça de Barros, no início
da semana, quando a revista
"Época" revelou a existência
da dupla chantagem: uma contra o governo, por meio das
gravações de conversas telefônicas na véspera das privatizações, e outra contra a cúpula
do PSDB -o presidente FHC,
o ministro José Serra, o governador Mário Covas e o falecido
ministro Sergio Motta.
O certo seria ratada (ninhada de ratos). Com o sufixo depreciativo "alhada" e um toque caipira produziu-se a preciosidade. O ministro também
poderia ter usado rataria e as
derivações ratonice, ratoneiro,
ratonear ou ratice, todos ratificados (nada a ver) pelos melhores dicionaristas (caso de
rateio, que vem de calcular).
Rataiada ou ratalhada (permito-me retirar as aspas por
acreditar na breve incorporação ao jargão político, com ou
sem caipirismo) sugere a ação
simultânea e danosa da rataria, aquele movimento compulsivo dos nojentos animais
obrigados, pela multiplicação,
a sair da escuridão para fazer
os estragos à luz do dia. Noite
de Cristais dos roedores.
Isto posto, convém registrar
outro dado da fenomenologia
político-mediática: os caminhos da nova esquerda. Nesta
última semana, o sociólogo
Alain Touraine, o premiê italiano Massimo D'Alema, a deputada eleita Luiza Erundina
(PSB-SP), a Federação das Indústrias do Rio (Firjan), o petista gaúcho Tarso Genro, seu
companheiro brasiliense Cristovam Buarque e, naturalmente, o premiê alemão Gerhard
Schroeder ao tomar posse no
parlamento apareceram no
noticiário indicando novos
conceitos, posturas e mesmo
etiquetas para esse salutar renascimento social-democrata
no auge da maior crise do capitalismo.
Falou-se em "Terceira Via",
Touraine sugeriu a política do
"Dois e Meio", D'Alema lançou
a "Esquerda Global" e Schroeder cunhou a "República do
Novo Centro" -esforço para
fazer melhor, não diferente. De
qualquer forma, descontados
os habituais simplismos e as
evidentes tentativas de domesticar o esquerdismo, estamos
assistindo, ainda que de forma
descontextualizada e fragmentária (característica do jornalismo contemporâneo), a uma
extraordinária revitalização
do socialismo democrático, a
terceira deste século.
A primeira se deu por intermédio do humanista francês
Jean Jaurès antes da Primeira
Guerra Mundial e, a segunda,
no pós-guerra, junto com os
primeiros confrontos da Guerra Fria, quando Palmiro Togliatti lançou as bases do eurocomunismo inspirado nos conceitos de Antonio Gramsci.
Ambas recusaram o "hegemonismo" revolucionário, optando pela política de frentes amplas diante do grande inimigo,
o fascismo.
A Nova Esquerda deixa de lado o obreirismo e o macanicismo marxista para se articular
contra o macanicismo do capitalismo especulativo. Não parece sensível à reemergência da
Velha Ultradireita, consistente
e coordenada, por meio dos diferentes fascismos contemporâneos. As deformidades econômicas, sobretudo no plano
mundial, corrigem-se pelas
medidas econômicas. Relativamente fáceis de serem ajustadas. Mas as anomalias políticas, sobretudo aquelas que dizem respeito aos valores democráticos, estão entranhadas,
não apenas nos desvãos das sociedades, mas na alma de seus
expoentes.
Recomenda-se aos que minimizam o surto fascista um
compêndio recém-lançado,
"The New Politics of the Right:
Neo- Populist Parties and Movements in Established Democracies" (Hans-Georg Betz &
Stefan Imerfall, MacMillan,
268 págs.), com estudos sobre
15 países nos cinco continentes.
Os fascismos (ou o "Ur-Fascism", o fascismo ancestral,
identificado por Umberto Eco)
têm características políticas,
ideológicas, mas igualmente
morais. É enganador na formulação conceitual, inescrupuloso na ação político-eleitoral e vicioso na escolha dos
protagonistas.
Aqui reaparece a rataiada ou
ratalhada identificada por
Mendonça de Barros. Há uma
jogada nitidamente ultradireitista -e, pela brutalidade, fascista- contra alguns expoentes do PSDB paulista, num momento em que este, graças ao
desempenho político e eleitoral, se afirma como pólo progressista e interlocutor de um
diálogo com as oposições, portanto capaz de influir na ação
do governo federal.
Os diversos entrevistados pela revista "Época", figuras de
proa do PT, cidadãos acima de
qualquer suspeita, mencionaram a participação direta ou
indireta de Paulo Maluf nas
tentativas de induzir o partido
a utilizar documentos falsos
nos momentos derradeiros do
segundo turno. Configura,
quando confirmada a óbvia
falsidade, claras infrações ao
Código Penal (artigos 304 e
158). Uso intencionalmente a
expressão "cidadãos acima de
qualquer suspeita" como profissão de fé humanista em contraposição a um tipo de jornalismo, dito investigativo, que
nivela por baixo e joga na sarjeta, indistintamente, homens
de bem e facínoras.
Ao lado de Paulo Maluf, os figurantes de sempre na grande
galeria de escândalos: Lafayette Coutinho, o senador Gilberto Miranda e Collor de Mello.
Pena que, por limitações de espaço, não possa reproduzir
aqui certas passagens do artigo
vetado em 24 de outubro deste
ano sobre o estranho conluio
entre Antonio Carlos Magalhães e o malufismo, por meio
do qual, o Partido da Frente
Liberal mostra-se liberal na
frente e truculento por dentro.
Mas fica um lembrete dos
marinheiros e estivadores. Para impedir que a ratada, rataiada ou ratalhada suba do
cais aos navios atracados, usa-
se sempre um disco de metal no
meio do cordame. Chama-se
rateira. Recurso sanitário, metáfora moral, antídoto político.
Notas: ao jornalista-filólogo
Josué Machado os agradecimentos pela valiosa dica. Aos
interessados no recrudescimento do fascismo sugere-se
ainda: "Dictionnaire Historique des Fascismes et du Nazisme" (S. Berstein & P. Milza,
Editions Complexe, Paris,
1992) e "Rapport 96 Racisme,
Extrême Droite et Antisémitisme en Europe" (Crida, Paris,
1995).
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