São Paulo, Terça-feira, 14 de Dezembro de 1999


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DISCO - LANÇAMENTOS
História do samba é revisada em pacotão

David Drew Zingg/Folha Imagem
O carioca Pìxinguinha (1897-73), relembrado em volume que inclui a íntegra do clássico "Gente da Antiga"


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
da Reportagem Local


Até há dois anos a principal responsável pela reedição de música popular brasileira histórica em pacotes de luxo, neste ano a EMI se confinou às coleções de preço popular, em especial na série "Raízes". Ao longo do ano, saíram os pacotes "Raízes Sertanejas" e "Raízes Nordestinas", agora é a vez de "Raízes do Samba".
São 26 títulos, cada um dedicado a um artista ou conjunto que integrou, em algum momento, os elencos de Odeon, Copacabana e Tapecar (todas hoje aglomeradas nas entranhas da EMI).
Seguem o padrão indigente da série, de encartes quase ocos e capas nonsense (o padrão aqui são fotos mal recortadas sobre os cariocas arcos da Lapa ao fundo, mesmo que o focalizado seja o paulista Adoniran Barbosa, o baiano Dorival Caymmi ou a mineira Clara Nunes -ê, gafe).
O passeio histórico começa por Carmen Miranda (em seleção concisa e certeira) e Pixinguinha (com fonogramas de três momentos distintos -inclusive a íntegra do sensacional LP "Gente da Antiga", de 68, com João da Baiana e Clementina de Jesus-, que clamam por relançamento urgente das formas originais).
Dorival Caymmi (talvez o maior sambista que se iniciou na Odeon e que lá sempre permaneceu, traçando histórias paralelas) merece volume privilegiado, com faixas menos óbvias (e divertidíssimas) como "Fiz uma Viagem", "365 Igrejas" e "Vestido de Bolero".
Outros sambistas heróicos que recebem apanhados abrangentes são Moreira da Silva (numa viagem genial pelo breque e pela malandragem) e Demônios da Garoa (embora regravações cansadas de "Tiro ao Álvaro" e "Trem das 11" tornem a compilação irregular); Adoniran Barbosa, autor nº 1 daquele conjunto quase caipira de samba paulista, só é contemplado por gravações dos 70 e em duetos.

Na transição para a bossa
De discípulos do samba de breque de Moreira da Silva vêm dois dos grandes momentos da coleção, dedicados a Jorge Veiga e Roberto Silva, cantores virtuosos que tanto aperfeiçoaram a tradição do samba de síncope quanto anteciparam o veludo da bossa nova que ia chegar. De Jorge Veiga encontram-se aqui o vozeirão, os arranjos cheios de charme ("Faustina") e os sambas de temática altamente irônica ("Café Soçaite", "Estatutos de Gafieira").
Vem então a transição rigorosa estabelecida por Elizeth Cardoso -outra daqueles que fazem a história da EMI-Odeon se confundir com suas próprias e que nunca mereceram reedição suficiente de suas obras (caso de Caymmi, Clementina de Jesus, Elza Soares e do aqui ausente Wilson Simonal).
(Deve-se lembrar, a esta altura, que a corrente bossa-novista implementada por João Gilberto entre 1958 e 1960 -e que revolucionou para sempre o samba- foi registrada na Odeon e, apesar de tão celebrada pelos quatro ventos, está fora de alcance por conta de desavenças entre João e a EMI).

Novos e tardios nos 60
Então, chegam os sessentistas -outro agrupamento sem retoques de "Raízes do Samba".
Aqui está Elza Soares, em volume que contempla não só a crooner de samba-jazz do início, mas também a fase Tapecar, dos 70, de "Salve a Mocidade", do ritualismo, do afro-samba, das macumbas mil. Há também seu contemporâneo Jair Rodrigues, mas só na fraca fase 85-87 (porque a dos 60, toda fora de catálogo, era da Philips, hoje Universal).
Aqui estão as tardo-revelações Nelson Cavaquinho e Clementina de Jesus, que tinham furor para ter brilhado desde décadas antes, mas só foram reencontrados no meio dos 60, muito pelos méritos de gente como Elizeth, Nara Leão e Hermínio Bello de Carvalho.
O volume de Cavaquinho é da voz bêbada zanzando sobre maravilhas como "A Flor do Espinho", "Juízo Final", "Rugas", "Luz Negra", "Folhas Secas".
O de Clementina é da voz bruta jogando efeito dionisíaco sobre os mais avassaladores rituais de samba, África e Brasil. Sua obra original, quase toda sob poder da EMI, continua em grande parte inédita em CD, à revelia de catedrais aqui amontoadas, como "Moro na Roça", "Madrugada", "Na Linha do Mar", "Pergunte ao João", "Tava Dormindo", "Olhos de Azeviche", "Na Hora da Sede", "Tute de Madame", tantas...
Paulinho da Viola, sambista-revelação dos 60, aparece em apanhado-padrão, como Clara Nunes, sua mal compreendida versão feminina (e extrovertida). São volumes de muito brilho e nada a acrescentar a suas já relançadas (e já desaparecidas) coleções.
Aí há Beth Carvalho, desde "Andança" (a toada de festival que infestou 68 e que não fazia suspeitar a sambista por vir), mas até antes de sua fase mais popular, da linha "Coisinha do Pai" (essa aconteceu na RCA; aqui, é samba de primeira e poucos grandes hits).

Híbridos e bregas nos 70
Abrem-se as comportas para os sambistas dos anos 70, e o cenário já é de certa fragmentação, de tendências variadas e dispersas.
Ouvem-se aqui discípulos do samba à Paulinho da Viola e/ou Martinho da Vila -João Nogueira, Roberto Ribeiro, o obscuro Partido em Cinco (conglomerado iniciador do partido alto, sob sambas de Monarco, Candeia e Wilson Moreira), a pagodeira Leci Brandão (em sua fase mais consistente), mais adiante o diluído Almir Guineto.
Ouve-se Bebeto, um injustiçado discípulo (bem, mais para copiador, mas sempre com muito know-how) de Jorge Ben, que nas bem-aprendidas fórmulas de mulher/futebol/samba África-Brasil reapresenta-se na coleção como um talento algo injustiçado.
Ouvem-se certos híbridos, como o "sambista de MPB" Gonzaguinha e dois integrantes do que se poderia chamar "sambrega", Benito "meu amigo Charlie Brown" di Paula e Luiz "aquele lencinho" Ayrão (tão híbrido que oferecera a Roberto Carlos o hit "Ciúme de Você", em 68).
Ouve-se, enfim, mais uma tardo-revelação, Ivone Lara, sambista de fibra que, apesar de nascida em 1922, só em 1978 tornou-se mais popular, a bordo do sucesso de "Sonho Meu" e "Alguém me Avisou" (só a primeira está na coletânea, mas sua voz macia se derrama por muito mais).
E, então, bem... Então, acabou.


Coleção: Raízes do Samba (26 títulos) Lançamento: EMI/Copacabana Quanto: R$ 15, em média, cada CD

Texto Anterior: Televisão: "Minissérie "A Muralha" é um risco", afirma Daniel Filho
Próximo Texto: Download
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.