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ARNALDO JABOR
Reflexões sobre o bumbum da Feiticeira nua
Chego à banca de jornais e peço:
"Me dá a Folha, o "Globo'". Pelo
canto do olho, vejo a "Playboy".
Pergunto: "Já chegou a "The Economist", o "Foreign Affairs'? Ah,
não? Então, me dá aquela revista
ali". "Qual?", pergunta a jornaleira. "Aquela ali...", respondo, com
falsificada displicência, apontando a revista com a Feiticeira na
capa. A gorda senhora italiana
me olha com um claro desprezo
irônico: "Essa é a última. Esgotou
em duas horas".
Vou para o escritório como um
velho onanista, esgueirando-me,
como se carregasse um crime nas
mãos. Eu precisava ver a Feiticeira nua. Tranco-me no escritório e
começo a rasgar o papel de celofane com mãos trêmulas. Sinto-me
um garoto dentro do banheiro.
Na capa, a loura Feiticeira me
olha de costas, exibindo uma bunda perfeita. E abro a revista. Aqui,
faço uma pausa para lembrar
meus 13 anos.
Naquele tempo, a "punhetinha"
se baseava apenas na narrativa
literária. Raras eram as revistas
sacanas. Hoje, sexo é imagem farta e colorida. Na época, era só literatura. Tínhamos de imaginar
complicadas tramas de suspense
com estrutura de romance policial. O que acendia o desejo eram
justamente as peripécias, os obstáculos a vencer até a satisfação
final.
Era assim: "Na sala vazia, dona
Abigail, severa professora de matemática, irritou-se comigo. "Raiz
quadrada de b2 mais 4 ac sobre
2a! Será que você não aprende?
Assim, não dá, Arnaldo!'". Abaixo a cabeça, coberto de vergonha,
e vejo a saia justa lascada do lado, vejo a deliciosa nesga de perna branca com celulite... (Ah, como a celulite é erótica.... Quantos
sabem disso? Oh, a imperfeição
que desperta o deboche, a deliciosa celulite apertada por ligas negras!) Dona Abigail grita comigo:
"Levanta a cabeça! Repete a
equação!". "Não sei, professora",
respondo, debulhado em lágrimas. "Oh, coitado. Vem cá, filhinho... Eu te ensino." E dona Abigail me aperta contra o peito e
afaga meus cabelos. Suas mãos
descem lentamente, enquanto
suas coxas com celulite se roçam,
produzindo o suave frufru das
meias de náilon recém-chegadas
da América...
Ou, então, podia ser a mãe
"boa" de algum amigo: "O Cabeção está em casa, dona Flora?".
"Não, Arnaldo... Mas eu estou.
Venha cá no quarto ver meu sapato altíssimo de verniz negro e
ponta fina que faz tic, tic no assoalho..." Ou, também, podia ser
a tia gostosa, solteirona e beata:
"Que lindo o seu novo Cristo crucificado, hein, titia?". O eflúvio
das velas perfumava o altar.
"Ajoelha aqui, Arnaldinho, e reza
comigo." O robe aberto sobre o
genuflexório...
Eram assim os atos impuros do
"vício solitário", como o nomeavam os padres confessores do colégio. Por incestos e traições, chegávamos até o prazer, que tinha
ares de uma expulsão do paraíso.
Volto a hoje, abro a revista com a
Feiticeira nua e começo a sofrer.
Decepciono-me com o que vejo.
Penso: "Estou velho ou então as
"uvas estão verdes'". Folheio a revista em busca do desejo, mas nada acontece... "Por que, meu
Deus? Ela é feia?" Não, claro que
não. Ela é lindíssima, mas está
nua demais. Ela é nua como um
cavalo. Nada é tão nu como a Feiticeira. A Feiticeira me parece um
cavalo maravilhoso e frio, diferentemente da Tiazinha, que surgiu como a caboclinha malvada e
pecadora. A Feiticeira não me
ama; ela quer me humilhar com a
sua nudez perfeita. Percebo isso
em outras louras implacáveis.
Adriane Galisteu, por exemplo.
Justus tentou aprisioná-la e virou
um náufrago na ilha de "Caras".
A Feiticeira não necessita do
leitor. Ela é tão perfeita que não
precisa de parceiros; ela está tão
nua e tão só que parece ser a namorada de si mesma. A mulher
(oh, meu machismo endêmico!)
deve mostrar ao macho uma carência humilde, deve cantar louvações a um impalpável "pênis
soberano".
Antigamente, a mulher gostosa
sabia a arte de não ser ninguém.
Hoje, diante da Feiticeira, o punheteiro vira um pobre excluído.
Ela é muito loura e rica para as
multidões de proletários sexuais
que jamais terão dinheiro para
conhecê-la.
Ela provoca uma tesão "de classe". Como abordar aquela mulher que mais parece uma paisagem? Como comer o sol, a montanha, como comer o cavalo narcísico? Ela não precisa de nós e,
quando nos olha, é com desdém,
como se estivesse nos vendo na
pusilânime solidão dos banheiros
secretos, na ignomínia do covarde pecado.
Antigamente, o homem pagava
para a cortesã "não" existir. As
cortesãs modernas "existem" demais. Não são para amar; são para "ver", são areia demais para
qualquer caminhão, são tão
olímpicas que todos brocham,
não por desinteresse, mas por impossibilidade técnica.
Suas fotos dizem: "Eu sou melhor que você, eu sou perfeita, eu
sou malhada; você não passa de
um gordo solitário, trancado na
sua medíocre vida sexual". A Feiticeira, esta semana, aumentou a
solidão dos pobres brasileiros.
O modelo da mulher de hoje,
que nossas filhas almejam ser, é a
"mulher-robô", a "valentina", a
"barbarela" sem alma. A Feiticeira quer ser uma máquina sexual
sem dúvidas e medos: "Sou tão
mais livre quanto mais uso o meu
corpo como se eu fosse uma "outra" que não sou eu, uma terceira
coisa. Meu ideal é ser desejada como um bom produto!". Como
amar um eletrodoméstico?
O problema dessas revistas de
sacanagem é que as poses são planejadas por homens, executivos
que as concebem como se desenhassem automóveis, criando as
mulheres que eles gostariam de
ser. As fotos de "Playboy" tinham
de ser editadas por senhoras infelizes em busca de amor.
A Feiticeira deveria engordar,
deixar crescer a celulite, botar
uma saia rasgada e nos olhar com
doçura. Aí, sim, tombaríamos
apaixonados....
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