São Paulo, Terça-feira, 14 de Dezembro de 1999


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ARNALDO JABOR
Reflexões sobre o bumbum da Feiticeira nua

Chego à banca de jornais e peço: "Me dá a Folha, o "Globo'". Pelo canto do olho, vejo a "Playboy". Pergunto: "Já chegou a "The Economist", o "Foreign Affairs'? Ah, não? Então, me dá aquela revista ali". "Qual?", pergunta a jornaleira. "Aquela ali...", respondo, com falsificada displicência, apontando a revista com a Feiticeira na capa. A gorda senhora italiana me olha com um claro desprezo irônico: "Essa é a última. Esgotou em duas horas".
Vou para o escritório como um velho onanista, esgueirando-me, como se carregasse um crime nas mãos. Eu precisava ver a Feiticeira nua. Tranco-me no escritório e começo a rasgar o papel de celofane com mãos trêmulas. Sinto-me um garoto dentro do banheiro.
Na capa, a loura Feiticeira me olha de costas, exibindo uma bunda perfeita. E abro a revista. Aqui, faço uma pausa para lembrar meus 13 anos.

Naquele tempo, a "punhetinha" se baseava apenas na narrativa literária. Raras eram as revistas sacanas. Hoje, sexo é imagem farta e colorida. Na época, era só literatura. Tínhamos de imaginar complicadas tramas de suspense com estrutura de romance policial. O que acendia o desejo eram justamente as peripécias, os obstáculos a vencer até a satisfação final.
Era assim: "Na sala vazia, dona Abigail, severa professora de matemática, irritou-se comigo. "Raiz quadrada de b2 mais 4 ac sobre 2a! Será que você não aprende? Assim, não dá, Arnaldo!'". Abaixo a cabeça, coberto de vergonha, e vejo a saia justa lascada do lado, vejo a deliciosa nesga de perna branca com celulite... (Ah, como a celulite é erótica.... Quantos sabem disso? Oh, a imperfeição que desperta o deboche, a deliciosa celulite apertada por ligas negras!) Dona Abigail grita comigo: "Levanta a cabeça! Repete a equação!". "Não sei, professora", respondo, debulhado em lágrimas. "Oh, coitado. Vem cá, filhinho... Eu te ensino." E dona Abigail me aperta contra o peito e afaga meus cabelos. Suas mãos descem lentamente, enquanto suas coxas com celulite se roçam, produzindo o suave frufru das meias de náilon recém-chegadas da América...
Ou, então, podia ser a mãe "boa" de algum amigo: "O Cabeção está em casa, dona Flora?". "Não, Arnaldo... Mas eu estou. Venha cá no quarto ver meu sapato altíssimo de verniz negro e ponta fina que faz tic, tic no assoalho..." Ou, também, podia ser a tia gostosa, solteirona e beata: "Que lindo o seu novo Cristo crucificado, hein, titia?". O eflúvio das velas perfumava o altar. "Ajoelha aqui, Arnaldinho, e reza comigo." O robe aberto sobre o genuflexório...
Eram assim os atos impuros do "vício solitário", como o nomeavam os padres confessores do colégio. Por incestos e traições, chegávamos até o prazer, que tinha ares de uma expulsão do paraíso.

Volto a hoje, abro a revista com a Feiticeira nua e começo a sofrer. Decepciono-me com o que vejo. Penso: "Estou velho ou então as "uvas estão verdes'". Folheio a revista em busca do desejo, mas nada acontece... "Por que, meu Deus? Ela é feia?" Não, claro que não. Ela é lindíssima, mas está nua demais. Ela é nua como um cavalo. Nada é tão nu como a Feiticeira. A Feiticeira me parece um cavalo maravilhoso e frio, diferentemente da Tiazinha, que surgiu como a caboclinha malvada e pecadora. A Feiticeira não me ama; ela quer me humilhar com a sua nudez perfeita. Percebo isso em outras louras implacáveis. Adriane Galisteu, por exemplo. Justus tentou aprisioná-la e virou um náufrago na ilha de "Caras".
A Feiticeira não necessita do leitor. Ela é tão perfeita que não precisa de parceiros; ela está tão nua e tão só que parece ser a namorada de si mesma. A mulher (oh, meu machismo endêmico!) deve mostrar ao macho uma carência humilde, deve cantar louvações a um impalpável "pênis soberano".
Antigamente, a mulher gostosa sabia a arte de não ser ninguém. Hoje, diante da Feiticeira, o punheteiro vira um pobre excluído. Ela é muito loura e rica para as multidões de proletários sexuais que jamais terão dinheiro para conhecê-la.
Ela provoca uma tesão "de classe". Como abordar aquela mulher que mais parece uma paisagem? Como comer o sol, a montanha, como comer o cavalo narcísico? Ela não precisa de nós e, quando nos olha, é com desdém, como se estivesse nos vendo na pusilânime solidão dos banheiros secretos, na ignomínia do covarde pecado.
Antigamente, o homem pagava para a cortesã "não" existir. As cortesãs modernas "existem" demais. Não são para amar; são para "ver", são areia demais para qualquer caminhão, são tão olímpicas que todos brocham, não por desinteresse, mas por impossibilidade técnica.
Suas fotos dizem: "Eu sou melhor que você, eu sou perfeita, eu sou malhada; você não passa de um gordo solitário, trancado na sua medíocre vida sexual". A Feiticeira, esta semana, aumentou a solidão dos pobres brasileiros.
O modelo da mulher de hoje, que nossas filhas almejam ser, é a "mulher-robô", a "valentina", a "barbarela" sem alma. A Feiticeira quer ser uma máquina sexual sem dúvidas e medos: "Sou tão mais livre quanto mais uso o meu corpo como se eu fosse uma "outra" que não sou eu, uma terceira coisa. Meu ideal é ser desejada como um bom produto!". Como amar um eletrodoméstico?
O problema dessas revistas de sacanagem é que as poses são planejadas por homens, executivos que as concebem como se desenhassem automóveis, criando as mulheres que eles gostariam de ser. As fotos de "Playboy" tinham de ser editadas por senhoras infelizes em busca de amor.
A Feiticeira deveria engordar, deixar crescer a celulite, botar uma saia rasgada e nos olhar com doçura. Aí, sim, tombaríamos apaixonados....


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