São Paulo, quarta-feira, 14 de dezembro de 2005

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MARCELO COELHO

Vocação do poder, miséria da política

Simpatia pelos políticos? Nada mais difícil, hoje em dia, do que esse sentimento. O ótimo documentário de José Joffily e Eduardo Escorel em cartaz no Espaço Unibanco arrisca-se a suscitá-lo um pouco no espectador. Mas "Vocação do Poder" sugere, também, outras questões.
A idéia foi acompanhar a campanha eleitoral de cinco candidatos a vereador no Rio de Janeiro, em 2004. Claro, torcemos pela vitória de todos -ou de quase todos. De perto, ninguém é mal-intencionado; de perto, ninguém é hipócrita ou cara-de-pau. O filme se aproxima dos personagens com carinho: são marinheiros de primeira viagem e trazem no olhar, nos gestos, nas frases, a marca da inexperiência. Da inocência, até. Diante dos possíveis eleitores, não sabem direito como se comportar: movem-se com a sem-gracice que eu ou você teríamos se inventássemos de ser candidatos também.
"Vocação do Poder", deste ponto de vista, é um título um tanto enganoso. Por razões familiares, por um certo interesse abstrato pela coisa ou por alguma veleidade meio inexplicável, as figuras retratadas no documentário se jogam na campanha sem que nada nos convença da urgência ou da inevitabilidade de suas pretensões.
As mais belas cenas do filme são as de derrota: o sorriso congelado no rosto de um candidato já sem chance, o choro contido de outro, que a câmera tem a delicadeza de esconder, ou as diversas ocasiões em que, sozinho, alguém se retira de um palco vazio, de uma rua deserta, confrontado com o desinteresse do eleitorado e com a própria timidez.
Nada mais pode ser descrito sem estragar a surpresa dos resultados eleitorais, e uma das habilidades do filme está em reservar alguns pequenos sobressaltos ao espectador. Quem diria que Fulaninho, pura flor de insignificância, terminaria eleito? E que aquela candidatura retumbante teria de se consolar com uma segunda suplência? Tudo depende -para recorrer ao lugar-comum- do "veredito implacável das urnas", mas também dos cortes, dos silêncios e das escolhas estratégicas que os realizadores impuseram ao material coletado.
Mesmo com essa opção por realizar um perfil intimista, familiar, quase confidencial de cada candidato, "Vocação do Poder" sugere alguns comentários sobre o funcionamento geral do nosso sistema político; entre o que o filme mostra e o que não mostra, várias coisas se podem intuir.
A primeira, claríssima, apesar de muita gente negá-la com insistência, é o caráter de classe de cada candidatura. Uma distância enorme separa o rapazinho tucano, distribuindo seus panfletos no calçadão de Copacabana, das profundezas sociais de onde emerge o obeso rapper MC Geléia, candidato do Partido Verde à Câmara Municipal.
Também é notório, no Brasil, que origem social, conteúdo programático e filiação partidária não sigam uma lógica das mais rígidas em cada candidatura. O postulante do PT, talvez o único a articular um discurso minimamente político ao longo da campanha, parece viver na mesma redoma de classe média alta que a de seu rival do PFL.
De qualquer modo, todas as candidaturas parecem viver um grande isolamento com relação aos respectivos partidos. Seria natural que, vez ou outra, os candidatos fossem convocados a encontros com seus correligionários, onde estratégias comuns e pontos programáticos fossem discutidos. Nada disso se vê no documentário. Impera o "cada um por si", onde qualquer coisa é mais importante do que o partido: a igreja evangélica, no caso da candidata do PTB, a máquina clientelística já formada em torno da própria família, no caso do garoto peemedebista filho de pai e mãe deputados, ou, na pior das hipóteses, a cara e a coragem, sem mais nada.
Claro que inexistem discussões concretas sobre a cidade, sobre a política nacional, sobre um tema qualquer que pudesse dar sentido para a campanha. A atuação mais assistencialista, que é a do candidato do PMDB, torna-se, deste modo, a mais concreta, a mais próxima do real. Uma equipe de atendimento faz visitas aos eleitores, anotando reivindicações diversas: de cadeiras de rodas a pequenas obras de contenção de enchente, a máquina do candidato oferece o necessário, sem passar pelo poder do Estado: é uma subprefeitura em miniatura, agindo privadamente, e recebendo em troca apoio eleitoral.
No caso desta candidatura, como de todas as outras, a conclusão é uma só: a atividade política desconhece, na verdade, a instituição do espaço público. As diferenças sociais, culturais, econômicas entre os eleitores são extremas; cada candidato age numa raia própria, num feudo único, isolado dos demais; o próprio horário gratuito é retalhado em fatias estreitíssimas para a aparição de cada um; candidatos e partidos não polemizam entre si. É como se o eleitorado fosse um imenso pesqueiro, onde cada candidato joga suas iscas, se é que as tem, e espera pelo máximo de votos que puder.
Não espanta que, mais tarde, os eleitos terminem confundindo as esferas do público e do privado. É que, desde a campanha, a esfera pública não tem existência real. O fenômeno não é exclusivo do Brasil, aliás. Mas aqui, pelas razões de sempre, tudo se agrava.
Não há soluções prontas para esse problema. Sem dúvida, o voto distrital mudaria um pouco o aspecto das campanhas para vereador ou deputado. Nesse caso, haveria só um candidato de cada partido, disputando os votos de um mesmo distrito, num clima de eleição majoritária.Um mínimo de convergência e de debate sobre questões comuns poderia, quem sabe, se produzir. Com a vantagem de que a campanha sairia, em tese, mais barata.
Mas não é minha função convencer ninguém de seja lá o que for. Para isso, bastam os candidatos. E que papel triste, o deles.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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