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MARCELO COELHO
Vocação do poder, miséria da política
Simpatia pelos políticos?
Nada mais difícil, hoje em
dia, do que esse sentimento. O ótimo documentário de José Joffily e
Eduardo Escorel em cartaz no Espaço Unibanco arrisca-se a suscitá-lo um pouco no espectador.
Mas "Vocação do Poder" sugere,
também, outras questões.
A idéia foi acompanhar a campanha eleitoral de cinco candidatos a vereador no Rio de Janeiro,
em 2004. Claro, torcemos pela vitória de todos -ou de quase todos. De perto, ninguém é mal-intencionado; de perto, ninguém é
hipócrita ou cara-de-pau. O filme
se aproxima dos personagens com
carinho: são marinheiros de primeira viagem e trazem no olhar,
nos gestos, nas frases, a marca da
inexperiência. Da inocência, até.
Diante dos possíveis eleitores, não
sabem direito como se comportar:
movem-se com a sem-gracice que
eu ou você teríamos se inventássemos de ser candidatos também.
"Vocação do Poder", deste ponto de vista, é um título um tanto
enganoso. Por razões familiares,
por um certo interesse abstrato
pela coisa ou por alguma veleidade meio inexplicável, as figuras
retratadas no documentário se jogam na campanha sem que nada
nos convença da urgência ou da
inevitabilidade de suas pretensões.
As mais belas cenas do filme são
as de derrota: o sorriso congelado
no rosto de um candidato já sem
chance, o choro contido de outro,
que a câmera tem a delicadeza de
esconder, ou as diversas ocasiões
em que, sozinho, alguém se retira
de um palco vazio, de uma rua
deserta, confrontado com o desinteresse do eleitorado e com a própria timidez.
Nada mais pode ser descrito sem
estragar a surpresa dos resultados
eleitorais, e uma das habilidades
do filme está em reservar alguns
pequenos sobressaltos ao espectador. Quem diria que Fulaninho,
pura flor de insignificância, terminaria eleito? E que aquela candidatura retumbante teria de se
consolar com uma segunda suplência? Tudo depende -para recorrer ao lugar-comum- do "veredito implacável das urnas", mas
também dos cortes, dos silêncios e
das escolhas estratégicas que os
realizadores impuseram ao material coletado.
Mesmo com essa opção por realizar um perfil intimista, familiar,
quase confidencial de cada candidato, "Vocação do Poder" sugere
alguns comentários sobre o funcionamento geral do nosso sistema político; entre o que o filme
mostra e o que não mostra, várias
coisas se podem intuir.
A primeira, claríssima, apesar
de muita gente negá-la com insistência, é o caráter de classe de cada candidatura. Uma distância
enorme separa o rapazinho tucano, distribuindo seus panfletos no
calçadão de Copacabana, das
profundezas sociais de onde
emerge o obeso rapper MC Geléia,
candidato do Partido Verde à Câmara Municipal.
Também é notório, no Brasil,
que origem social, conteúdo programático e filiação partidária
não sigam uma lógica das mais rígidas em cada candidatura. O
postulante do PT, talvez o único a
articular um discurso minimamente político ao longo da campanha, parece viver na mesma redoma de classe média alta que a
de seu rival do PFL.
De qualquer modo, todas as
candidaturas parecem viver um
grande isolamento com relação
aos respectivos partidos. Seria natural que, vez ou outra, os candidatos fossem convocados a encontros com seus correligionários, onde estratégias comuns e pontos
programáticos fossem discutidos.
Nada disso se vê no documentário. Impera o "cada um por si",
onde qualquer coisa é mais importante do que o partido: a igreja
evangélica, no caso da candidata
do PTB, a máquina clientelística
já formada em torno da própria
família, no caso do garoto peemedebista filho de pai e mãe deputados, ou, na pior das hipóteses, a
cara e a coragem, sem mais nada.
Claro que inexistem discussões
concretas sobre a cidade, sobre a
política nacional, sobre um tema
qualquer que pudesse dar sentido
para a campanha. A atuação
mais assistencialista, que é a do
candidato do PMDB, torna-se,
deste modo, a mais concreta, a
mais próxima do real. Uma equipe de atendimento faz visitas aos
eleitores, anotando reivindicações
diversas: de cadeiras de rodas a
pequenas obras de contenção de
enchente, a máquina do candidato oferece o necessário, sem passar
pelo poder do Estado: é uma subprefeitura em miniatura, agindo
privadamente, e recebendo em
troca apoio eleitoral.
No caso desta candidatura, como de todas as outras, a conclusão é uma só: a atividade política
desconhece, na verdade, a instituição do espaço público. As diferenças sociais, culturais, econômicas entre os eleitores são extremas;
cada candidato age numa raia
própria, num feudo único, isolado dos demais; o próprio horário
gratuito é retalhado em fatias estreitíssimas para a aparição de
cada um; candidatos e partidos
não polemizam entre si. É como
se o eleitorado fosse um imenso
pesqueiro, onde cada candidato
joga suas iscas, se é que as tem, e
espera pelo máximo de votos que
puder.
Não espanta que, mais tarde, os
eleitos terminem confundindo as
esferas do público e do privado. É
que, desde a campanha, a esfera
pública não tem existência real. O
fenômeno não é exclusivo do Brasil, aliás. Mas aqui, pelas razões
de sempre, tudo se agrava.
Não há soluções prontas para
esse problema. Sem dúvida, o voto distrital mudaria um pouco o
aspecto das campanhas para vereador ou deputado. Nesse caso,
haveria só um candidato de cada
partido, disputando os votos de
um mesmo distrito, num clima de
eleição majoritária.Um mínimo
de convergência e de debate sobre
questões comuns poderia, quem
sabe, se produzir. Com a vantagem de que a campanha sairia,
em tese, mais barata.
Mas não é minha função convencer ninguém de seja lá o que for. Para isso, bastam os candidatos. E que papel triste, o deles.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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